Rex Butler, Slavoj Žižek: Live Theory,
Nova Iorque, Continuum, 2005.
APRESENTAÇÃO DE SLAVOJ ŽIŽEK
1.
Nos últimos dois anos, publicaram-se pelo menos cinco livros sobre a obra multiforme de Slavoj Žižek (por Tony Myers, Sarah Kay, Matthew Sharpe, Ian Parker e Rex Butler), o esloveno que parte de Lacan para analisar Stephen King (ou o inverso), que despreza a noção de direitos humanos (texto brilhante na New Left Review, 34), que elogia a biogenética e a intolerância (Plaidoyer en Faveur de l’Intolerance, Climats, 2004) para superar os equívocos da política contemporânea. Imaginação imparável, estilo inconfundível, por vezes tão compulsivo que estranha o próprio autor. Além disso, sendo um dos mais extraordinários pensadores contemporâneos (juízo que não será só meu, mas que me limito a subscrever totalmente), considero a sua ausência na edição portuguesa a nossa mais absurda lacuna filosófica.
Tomo este livro de Butler como ponto de partida por três razões: primeiro, foi o último publicado sobre o esloveno e, por isso, proporciona um balanço mais alargado da sua galáxia; segundo, é um livro publicado pela Continuum, editora com um extraordinário catálogo (Deleuze, Derrida, Badiou, Rancière e, claro, Žižek) que trata os livros como indispensáveis ferramentas de trabalho partilhável. Por exemplo, Le Partage du Sensible, de Rancière, é publicado com duas eficazes introduções, uma entrevista de Rancière para a edição inglesa, um posfácio de Žižek (utilíssimo) e um glossário de conceitos utilizados; em terceiro lugar, Butler é o autor da antologia Interrogating the Real (Continuum, 2005) de Žižek, com textos desde os anos 80, o primeiro volume dos Collected Writings, com prefácio inédito de Žižek e um glossário imprescindível.
Butler começa pelo mais importante: saber, para além do virtuosismo da obra, se existe um pensamento «zizekiano», como há um «deleuziano», «derridiano», etc. A resposta de Butler é afirmativa. O pensamento zizekiano assenta em dois temas próprios: o «acto» e o «significante-mestre» (master signifier).
Para começar, é pertinente considerar o acontecimento em Alain Badiou como ponto de apoio para a compreensão do acto em Žižek. Aliás, o próprio Butler, no capítulo do seu Live Theory intitulado «What is an act?» (pp. 66-94), reserva 9 páginas para a comparação e distinção entre acto e acontecimento – esforço que é apenas parcialmente conseguido, porque as afinidades são flagrantes.
Em Badiou o acontecimento é aquilo que, sem medida e imprevisivelmente, transforma uma situação estável. Ou melhor, como qualquer situação (uma cidade, um momento histórico, um governo, um estilo artístico, etc) possui inconsistências, e porque estas são invisíveis antes do acontecimento, este é acima de tudo a revelação não só dessas inconsistências mas a descoberta do reprimido, do que nunca teve direito à visibilidade: a Revolução de 1789, um dos acontecimentos eleitos por Badiou, tornou visível a insustentável exploração e opressão do povo pela aristocracia.
Em Žižek o acto é também uma ruptura, neste caso (em termos lacanianos) no seio da ordem simbólica. Como o acto rompe a ordem simbólica, ele não pode ser nomeado nem compreendido por ela. Isto é, não o podemos definir utilizando a linguagem «derrubada». Logo, é o acto que cria as condições da sua nomeação e só pode ser definido pelo «novo» que instaura. Tal como o acontecimento, o acto mostra que as novas condições (a transformação política ou estética) sempre estiveram latentes, mas só o acto (ou o acontecimento), quando plenamente realizado, permite essa identificação. Por isso é que o acto não se opõe à ordem simbólica e há entre eles uma interdependência.
Pergunta Butler: onde é que Žižek se afasta de Badiou? Em dois pontos. Por um lado, retomando a oposição Kant versus Hegel, Žižek aproxima Badiou do primeiro, reclamando para si Hegel relido por Lacan. Assim: em Badiou, o acontecimento é uma excepção (na situação); tal como em Kant o sublime é uma excepção à racionalidade. Diferentemente, em Hegel o sublime não é propriamente uma excepção mas antes o que faz da razão uma não-totalidade.
2.
Um «not-all», dirá Žižek, um «princípio feminino» que remete para a relação entre lei e amor (Lacan). Neste contexto, o amor não pertence à lei nem à dialéctica «lei-transgressão» (dialéctica que é um princípio masculino). Ao contrário, o amor abre uma permanente incompletude, porque ele está sempre além do conhecimento total.
Trata-se de um tema pauliano, como veremos, o de que o ser «incompleto» ultrapassa o «completo». O que em Žižek se torna uma exaltação da «carne imperfeita». Nessa reivindicação, de que é acérrimo defensor, e contra aquilo que chama a banalidade pantanosa do pós-modernismo (com as suas «religiões», do gnosticismo New Age ao judaísmo desconstrutivista de Emmanuel Levinas, passando pela democracia parlamentar), move-se parte substancial do trabalho de Slavoj Žižek, pelo menos desde The Fragile Absolute: Or, Why is the Christian Legacy Worth Fighting For ? (Verso, 2000).
Žižek, em determinado momento, caracteriza o espírito New Age através do que chama «razão ciber-espacial», «Budismo Ocidental», ou versão de shopping center da «espitualidade asiática», enfeudada em visões estereotipadas do «equilíbrio espiritual» e outras promessas de harmonias cósmicas; enfim, toda uma panóplia de suplementos e receitas do capitalismo global, que tudo vende e principalmente a ideia de Perfeição (tanto melhor se ligada ao corpo). Contra esta mentalidade de pacotilha, Žižek vem propor o elogio da imperfeição, da materialidade e carnalidade – ou seja, daquilo que o núcleo do cristianismo tem, no fundo, para oferecer. E como é que Žižek concretiza esta reivindicação sem concessões? De duas maneiras: em primeiro lugar, procura respostas no materialismo radical do marxismo; em segundo lugar, usando sucessivas releituras da psicanálise lacaniana.
O presente livro interpela e desenvolve esta segunda estratégia; livros como The Fragile Absolute ou On Belief (Routledge, 2001) ligam-se privilegiadamente à primeira (convocando mesmo, como veremos em On Belief, um marxismo que não prescinde do leninismo). A abrir The Fragile..., surge o programa de trabalho: o começo desta luta contra o retorno do religioso em tempo de pós-modernidade, para um marxista como Slavoj Žižek, passa por anular a religiosidade dentro do próprio marxismo. Como? Guerreando com as teses que pretendem reduzir o marxismo ao messianismo. Žižek tem neste campo um outro duplo papel: por um lado, intenta libertar o marxismo do messianismo (ligando-o inexoravelmente a Lenine), e, por outro lado, pugna por uma idêntica limpeza do cristianismo, teorizando-o como a única «religião materialista» de entre as existentes, definindo-a em conclusão como a religião da imperfeição e da carne. Retomando a diferenciação de «fé» e mero gnosticismo em Harold Bloom, Žižek vai reivindicar um Deus que, neste mundo, convive com os campos de morte, com a esquizofrenia e a sida, porque é precisamente um Deus deste mundo e não de um outro mundo para além do que imediatamente nos cerca.
As figuras essenciais para Žižek são (de certo modo na senda das teses de Alain Badiou) S. Paulo, Lenine e Lacan. São os três hereges maiores: S. Paulo reinterpretou Cristo a seu modo (alicerçou a importância de Cristo na «ressurreição», apartou o cristianismo de qualquer «identidade» e refundou-o como religião cosmopolita), Lenine aplicou Marx fora do contexto preconizado por este (a Russia da Revolução de Outubro era um país predominantemente rural e não industrial, não nos esqueçamos) e Lacan reinterpretou e reinventou Freud. Em The Puppet and the Dwarf: The Perverse Core of Christianity (MIT Press, 2003), Žižek radicaliza a sua postura: não se trata de dizer que até um materialista pode chegar ao núcleo do cristianismo, mas antes de sublinhar inequivocamente que apenas um materialista pode compreender o núcleo desta religião. E é através desta experiência, e apenas através dela, que se pode formar um verdadeiro materialista dialéctico.
A figura de S. Paulo ocupa neste livro, a par de Lacan, como disse, o lugar central. De certo modo, Žižek segue – como reconhece explicitamente desde o citado The Fragile Absolute... (ou antes, desde The Ticklish Subject: The Absent Centre of Political Ontology, Verso, 1999) – Alain Badiou, para quem S. Paulo funda uma comunidade universal tendo por base um «acontecimento-declaração» (ou uma proclamação puramente subjectiva e inverificável: Cristo ressuscitou). Para Badiou o sujeito cristão não preexiste ao «acontecimento». Em The Puppet and the Dwarf, Žižek destaca esse gesto-declaração a que Badiou faz referência cimeira: não se trata de admirar a figura histórica de Cristo, a sua trajectória pessoal e os seus milagres, mas sim o facto de ter morrido na cruz e depois ressuscitado – é este o «acontecimento», como vimos. Daqui partirá Žižek para comparar S. Paulo a Lenine: depois do «acontecimento», impôs-se organizar um novo partido, a comunidade cristã, organização que Žižek compara ao partido bolchevique enquanto plataforma para a acção colectiva.
Citámos a relação militante, digamos assim, entre S. Paulo e Lenine. Passemos agora à ligação entre S. Paulo e Lacan. Comecemos por um problema estudado por ambos, o da dependência ou conflitualidade entre Lei e Amor (The Puppet and the Dwarf, capítulo «From law to love...and back»). Vejamos uma interrogação comum: é a oposição entre Lei e Amor interna à Lei (ou seja, define-se esta oposição como a conflitualidade entre a «lei positiva» e a «lei para além de todas as medidas» -- sendo este o paradoxo da não-totalidade interior à Lei), ou tal oposição marca um começo dentro da Lei e um posterior afastamento, isto é, a necessidade do Amor sair da Lei para ser sempre «Amor fora da Lei»? Problema pauliano com que se debate Lacan: está o amor dentro ou fora da lei? Existe amor fora da lei? A resposta é complexa. Vejamos a hipótese seguinte.
Mesmo que consigamos possuir todo o conhecimento possível (sermos «completos» de conhecimento), não podemos apagar a presença do amor no mundo. O amor estará sempre presente e, por isso, além de tudo (infinitamente para lá do conhecimento total, portanto – alcançar o amor será alcançar o mais vasto do mais vasto). Por outro lado, não paramos de necessitar de amor porque somos sempre incompletos. Trata-se, em S. Paulo, do paradoxo da completude, como referi: se só o ser incompleto pode amar, então este «homem incompleto» vai mais longe do que o «completo». O incompleto é superior ao completo, porque só o incompleto pode amar, ou seja, chegar aonde não chega o possuidor do conhecimento «total».
Também em Lacan o amor é lido segundo este paradoxo, porque não pertence à lei, não pertence ao «todo» e à lei universal (por isso esta dialéctica da lei e sua transgressão, tanto quanto o posso supor, é masculina enquanto o amor é «feminino»). Aqui encontrará Žižek o núcleo do cristianismo: o conhecimento é «finito» e o amor é «infinito». Mas ao infinito do amor só o ser imperfeito pode chegar. Ao contrário do paganismo, no cristianismo só a imperfeição e a incompletude é que são perfeitas: só a imperfeição pode alcançar o divino e o amor. A fragilidade absoluta. Ou melhor, a fragilidade é um absoluto. Somente a fragilidade.
3.
Voltemos a Rex Butler e a Badiou como tema de comparação. Explica o autor que enquanto Badiou vê o acontecimento como positividade, com ele se identificando porque inaugura uma verdade («a verdade é o que acontece»), Žižek recusa esta identificação positiva e vê nela o regresso da ordem simbólica. Neste passo, reclama de Lacan uma negatividade que impedirá esta identificação com uma nova causa. Ao considerar que Badiou define o sujeito do acontecimento como o que se identifica com uma nova causa (nova ordem), Žižek propõe-nos um sujeito que não adere a uma causa, porque ele, o sujeito, é que é a causa. Žižek parece-me aqui mais próximo do pensamento anarquista do que marxista. Recorda-me o princípio de Max Stirner: «a minha causa é a causa de nada», eu próprio, eu-único, eu sou a minha causa e a «minha propriedade».
Žižek não opõe o sujeito à situação (como Badiou), porque o sujeito se dirige agora contra o sujeito. E é aqui que Žižek retoma psicanaliticamente a pulsão de morte. Mas esta não aponta para um evento último (a morte), porque ela é a intensificação do vivido. E o vivido intensifica-se porque se percebe limitado. O significante-mestre pertence a esta intensificação: é uma «re-marcação» de algo já presente desfazendo qualquer auto-evidência e auto-suficiência. Por exemplo, num trecho de uma obra de Mozart (Serenata KV 361), há um tema introdutório que dialoga com outro tema que aparece alguns compassos depois. No decorrer do trecho percebe-se que o segundo tema não é o acompanhamento do primeiro, e até ocorre o inverso. Para Žižek esta sucessão de inversões faz de cada estrutura uma estrutura aberta, porque ambos os temas (o primeiro e o segundo) são percebidos como variantes de um terceiro não apresentado: um resto que aparecerá sem aparecer – um objet petit a na terminologia de Lacan. Objet petit a, que pode multiplicar uma obra até ao infinito: um resto que está sempre para aparecer sem aparecer.
Para Butler, na Introdução da antologia Interrogating the Real, este «resto» que continua mecanicamente a falar depois de tudo ter sido dito, esta vocação de prolongar o «nada para dizer», é a característica da escrita de Žižek, que depois de concluir um raciocínio o prolonga indefinidamente com exemplos sobre exemplos: da «série B» ao romance policial, passando pela música. Produzindo uma «enunciação sem enunciado». Inédita abertura para um «resto» potencial que pode surgir mesmo depois do «sujeito suposto saber» – escrita e pensamento – terem terminado o seu papel.
Muito resumidamente, em Lacan, quando é que termina uma análise? Quando o analisando «passa» ao analista a sua vontade de ser analista e aí derrota o «suposto saber» do médico que o analisou. Nesse momento, o analista é o «resto» da análise, perde o seu poder inicial. Žižek faz desse «resto» um espaço central e um método de trabalho.
CARLOS VIDAL
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