Textos de apoio | Temas de arte contemporânea: Alain Badiou 2

Capítulo 2 de:


Carlos Vidal, SOMBRAS IRREDUTÍVEIS: Arte, Amor, Ciência e Política em Alain Badiou, Lisboa, Vendaval Ed., pp. 52-89.













Continuaremos, reflectindo sobre o papel que o filósofo atribui à Matemática (partindo da teoria dos conjuntos e principalmente de Georg Cantor) na definição de igualdade – fulcral para as suas concepções políticas: de facto, daí despontará o direito à igualdade (cruzado concretamente com a construção da noção de infinito) que supera tanto o tão em voga «direito à diferença», quanto qualquer ontologia da finitude.

Veremos ainda como Badiou opera noutras temáticas: na «solução» do problema da verdade (conciliando singularidade e multiplicidade); na política (seguindo o princípio «sem partido, sem eleições, sem estado»); e na estética (propondo e trabalhando o conceito de «inestética»).



















7. Destemor: a laicização do infinito

Vimos que o vazio é inerente à situação, porquanto espelha a sua imanente autodestrutividade. Resulta do seu excesso e é, ao mesmo tempo, a sua verdade, pois é do vazio que irrompe de forma efémera o retrato real da situação. O vazio alicerça a teoria, a acção política e a ontologia transitória de Badiou, e resulta na/da irrupção do acontecimento (ou provém, precisamente, do seu sítio) e da exaltação de um niilismo activo -- o «bom terror», se quisermos retomar a expressão irónica de há pouco. Conjugados com a teoria dos conjuntos, três outros tópicos estão aqui implicados: uma laicização do infinito; uma singularidade genérica e uma singularidade sem especificidade.

A matemática serve para nos libertar das armadilhas que a religião tece ao infinito (este, em Badiou, é o horizonte da arte, do niilismo activo da política, do amor e da ciência). Quando separamos os nossos actos de uma finalidade e objectivo imediatos, assumimos o infinito por dimensão. Georg Cantor veio mostrar-nos, pela primeira vez desde a recusa de Aristóteles, que o infinito é representável – num enunciado fundamenteal: o infinito não é apenas o indefinido a crescer sem parar. Mais do que representável, ou porque representável, o infinito é uma construção e não uma natureza.

Passemos à teoria dos conjuntos.1 Esta admite que se formem conjuntos com objectos ou com os próprios axiomas. Assim, as modalidades técnicas e teóricas («ferramentas») empregues na formação de um conjunto são, elas mesmas, um conjunto. Registe-se a similitude entre conjunto e teoria: ambos são construções. A existência de conjuntos depende, obviamente, de podermos criar 1 conjunto (existem vários porque pode existir 1). Para tal, como na aritmética (0, 1, 2, 3, 4, 5 ....), teremos de começar por um conjunto vazio [ temos a sequência: conjunto vazio; conjunto com 1 elemento; conjunto com 2 elementos; conjunto com 3 elementos, etc. O conjunto vazio equivale ao zero e permite-nos construir o sistema dos números ordinais: O conjunto que integra o conjunto vazio é igual a Um: { (o segundo número ordinal). E sucessivamente: { 



Noutra notação:



O conjunto {está integrado em { 



Logo:



. . . . . . . . . . . .









0 1 2 3 . . . . . . . . . . . . . 0

0, 1, 2, . . . .



Ao determinarmos o limite mais elevado, diremos estar num sistema finito de ordinais. O último ordinal contável – ordinal limite -- de uma escala é, portanto, maior que o anterior, sem que «anterior» deva aqui pressupor, anote-se, qualquer «sucessão». Veja-se a definição de ordinal limite em L’Être et L’Événement: «Um ordinal limite é um ordinal diferente de  e que não é um ordinal sucessor. Um ordinal limite é, em conclusão, inacessível através da operação de sucessão».2 A chave do entendimento deste carácter não sucessório do ordinal limite, enunciou-a Badiou em Le Nombre et les Nombres: «não é de maneira nenhuma a mesma coisa passar de n a n + 1 (seu sucessor), e passar de “todos” os números naturais ao seu mais distante que é o ordinal infinito . No segundo caso, há manifestamente um salto, a pontuação de uma “passagem ao limite”».3

Surge entretanto a hipótese de Cantor: se pudermos determinar a existência desse ordinal limite (ordinal infinito) , logo é possível conceber o ordinal seguinte Que será o primeiro número infinito ou cardinal. Para Badiou será Portanto, 0 é o último ordinal contável  1. É o primeiro número infinito; iremos considerá-lo o infinito mais pequeno, mais imediato, ou o infinito mais próximo.

Seguem-se várias sequências de números infinitos ou transfinitos:



0, 1, 2, 3 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .



0, 1, 2, 3, . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .





O infinito explicita-se aqui como uma construção, o mais distante possível do natural definível, ou antes, nesta sequência, indefinível. É a resposta de Cantor – o problema da natureza do infinito não tem solução senão através de uma construção autoconsistente.

Daqui chegaremos à subjectividade pura, com intensíssimas repercussões políticas, e não forçosamente a uma «matematização do mundo». Porque a subjectividade pura é indiferente à numericidade: esta numericidade é antes integrante, por exemplo, da governação socioeconómica; pelo contrário, a subjectividade pura, fundada no número, autolegitima-se. Isto é, não espera pela eficácia para existir.

Esta autolegitimidade do número (ou laicização do infinito em direcção à singularidade sem especificidade, retomando dois tópicos sugeridos), faz-nos recuperar o tema do múltiplo versus uno. Peter Hallward fá-lo abrir o capítulo 4 de Badiou: A Subject to Truth, «Badiou’s Ontology»: «Para Badiou, a única ontologia possível do Um é a teologia».4 Com Deleuze e Lyotard, Derrida (da disseminação à desconstrução) e Lacan (no entendimento da «dispersão pontilhista da realidade»), Badiou vem reiterar que, em filosofia, a originalidade surge do múltiplo. Mas, qual é a especificidade do seu «múltiplo» ? O que distingue Badiou da complexidade infinita e do diferimento de Derrida ? Em primeiro lougar, o múltiplo tem de ser vazio, puro e simples. Mas atenção, Badiou não pulveriza a existência com infinitas «essências», post-scriptuns e «identidades», como o desconstrutivismo. Badiou procura a universalidade da multiplicidade. Como depende do acontecimento, a universalidade não tem fim. Nem no nome, nem na situação. Estende-se sem se deter em nenhuma multiplicidade de tipo identitário ou parcelarmente reivindicativo. Uma multiplicidade sem universalidade é uma falsa desterritorialização, tema a desenvolver no capítulo III, onde o problema do Outro ligado à ética inverte, desde que aplicado como predominantemente vem sendo, os seus propósitos. Nesse particular, creio ser fundamental desamarrar o Outro dessa limitada condição, desse confinamento interessado, dizendo que o Outro é simultaneamente um não-Outro.



8. Singularidade genérica: verdade e multiplicidade

A identidade deve poder ser uma não-identidade, e esta é um valor universal que termina no vazio puro e simples, sem limite e não fundado. A identidade que não é uma não-identidade só pode ser uma pretensa e ilusória supressão da conflitualidade das multiplicidades ao serviço, por exemplo, da indústria do turismo. Ou da «política da opinião» alicerçada no seu chorrilho de «valores» («tolerância», «diferença», «direito à vida», «garantias», etc).

Dizemos que há um universal não fundado quando está liberto do Uno teológico. Como vimos, esta infinitude das singularidades sem especificidade é cabalmente transmitida pela matemática e pelos conjuntos: neste sentido tudo é múltiplo, porque tudo é conjunto. Como não existe heterogeneidade ao múltiplo, logo: 1 conjunto finito de países, 1 conjunto de moléculas ou 1 conjunto de galáxias são conjuntos de coisas idênticas, porque a unidade, ou a característica individual, não é um atributo intrínseco. Aqui diria eu que a identidade é também uma não-identidade.

A característica individual de uma (qualquer) coisa advém da sua pertença a um específico conjunto – a esse conjunto e não a outro. Dizemos que uma galáxia é diferente de uma estrela porque pertencem a conjuntos diferentes. Cada coisa existe na sua pertença a um determinado conjunto, nada pertence só a si mesmo. Badiou dirá que o pertencer [  ] é a relação fundadora. Junto ao equivaler [ = ] são as duas «acções ontológicas».

Não se ignora a singularidade de cada indivíduo, simplesmente parte-se de outro ponto: por exemplo, o conjunto dos «franceses contribuintes» nada tem a ver com as características pessoais de cada «contribuinte» (bom, mau, alto, baixo .... ). Esta teoria, com os seus princípios consistentes, complexifica-se noutros conceitos operativos: distinguindo «pertença» de «inclusão», como referimos; «membro» e «parte» de um conjunto; distinguindo conjunto de sub-conjunto. A partir desta singularidade genérica, ou singularidade sem especificidade, regressemos ao tema da verdade. No último capítulo de Manifeste pour la Philosophie (1989), o autor caracteriza-nos a genericidade da verdade. Destaquemos esta genericidade.

Descrevi, como alicerce-base do ser, a existência de um múltiplo puro. Que o ser é múltiplo, já todos o sabemos, reafirmará Badiou, juntamente com os sofistas, Heraclito, o antifilósofo Wittgenstein e Deleuze. Caracterizando a sua filosofia como clássica por natureza, irá posicionar-se do lado de Platão e Descartes contra Wittgenstein e Heidegger, destacando em Platão a temática «dos direitos do Uno».5 Daí propõe Badiou o conceito de «platonismo do múltiplo». Que é a conciliação da verdade com a multiplicidade. Começa-se pela interrogação: «Se o ser é múltiplo, como salvar a categoria da verdade, centro de gravidade do gesto platónico ?»6 Resposta: pelo indiscernível. Assim: «uma verdade não pode ser senão a produção singular de um múltiplo. O problema reside totalmente no facto de este múltiplo dever ser subtraído à autoridade da língua. Será indiscernível».7 A subtracção à nomeação faz da verdade um múltiplo de procedimento singular. Uma multiplicidade genérica. Esta multiplicidade genérica gera as quatro condições filosóficas («procedimentos», expressão comummente referida) da verdade que já conhecemos: arte, ciência, política e amor. Nestas quatro condições observaremos e explicitaremos não cessar a produção de verdade, pois a inconsistência do ser e da situação é permanente.

A figura de S. Paulo (como analisada em Saint Paul et la Fondation de l’Universalisme, 19978) é determinante para a compreensão dos critérios de uma verdade. S. Paulo fundou o cristianismo a partir não do exemplo da vida de Cristo, mas da sua «ressurreição» -- um facto que ele transformou em acontecimento. Ou seja, a partir da nomeação de uma faculdade transcendente. No sistema verdade-acontecimento, como sabemos, a ressurreição de Cristo é o acontecimento do cristianismo, e o sujeito do acontecimento é a comunidade dos crentes, porque o sujeito é aquele que é fiel ao gesto fundador e rupturante de Paulo. Primeira criterização: o sujeito do acontecimento e a verdade não pré-existem ao acontecimento; segunda: a verdade é inteiramente subjectiva; terceira: é um processo (construção, conceptualização, nomeação) e não uma iluminação; quarta: a verdade é independente da situação – nestes termos, a declaração de S. Paulo sobre a «ressurreição» nada tem a ver com os ditames do governo do estado romano, nem com os que se lhe opunham.9



9. O futuro sem partido, sem eleições, sem Estado

Badiou fixa o que pode edificar-se com o nome de «política» sob o signo de 1793. Na forma de um episódio revolucionário, em 1792 ocorre uma sublevação popular em Paris que culminará, um ano mais tarde, no decisivo enfrentamento entre girondinos e montanheses e na derrota dos primeiros (Revolução de 31 de Maio, 1793), os quais defendiam a primazia dos direitos individuais e a propriedade sobre os direitos sociais. Inversamente, seguindo Robespierre e Saint-Just, o direito ao trabalho e a existir (feliz, segundo Saint-Just, sem deveres nem contrapartidas, segundo Raoul Vaneigem), estão acima de todas as leis da propriedade.

Robespierre, discurso «Sur les subsistences et le droit à l’existence» à Convenção de 2 de Dezembro de 1792:



O negociante pode muito bem guardar, nos seus armazéns, as mercadorias que o luxo e a vaidade cobiçam, até ao momento em que as pode vender ao mais alto preço possível; mas nenhum homem tem o direito de acumular amontoados de trigo na proximidade do seu semelhante que morre de fome.

Qual é o primeiro objectivo da sociedade ? É o de manter os direitos imprescritíveis do homem. Qual é o primeiro desses direitos ? É o de existir.

Portanto, a primeira lei social é aquela que garante a todos os membros da sociedade os meios para existir; todos os outros são subordinados a esse fim; a propriedade não é instituída nem garantia senão para cimentar a existência; antes do mais, é para viver que existem propriedades.10



Existir, retomando os termos propostos por Raoul Vaneigem (trocando o «não há direitos sem deveres» por um «não há direitos sem desejos»11), não depende, em nenhum critério, de direitos nem de contrapartidas (que apenas conduzirão à particularidade sem multiplicidade), até porque, seguindo ainda Robespierre e a legalidade que proclama, o direito a existir não é uma garantia menor para os arredados do trabalho. Por isso afirmará Badiou que a política, desde o acto fundacional de 1793, só pode ser igualitária, antiestatal, genérica e desconstrutora das estratificações interessadas, em suma, a política só tem este nome quando refuta a condição das representações hierárquicas e diferenciadoras -- só existe política num comunismo de singularidades.12



9.1. A política contra a opinião (política versus filosofia política)

Antes do mais, afirmaremos que a política não é matéria de opinião nem de juízo; nem, por outro lado, pode ou não ser legitimada pela filosofia. A filosofia não pode legitimar ou deslegitimar o pensamento que a política é ela própria. De outra maneira, a filosofia não pensa a política. A política não é «o» político da filosofia. Donde, a primeira tese da política, para Badiou, que o próprio transformará na exigência fundamental do pensamento contemporâneo, é a destituição e refutação definitiva da «filosofia política».

No início de Abrégé de Métapolitique,13 lança Badiou um ataque inequívoco e muito detalhado a Hannah Arendt e ao edifício da filosofia política. Arendt, enquanto leitora e seguidora de Kant, e seus continuadores (no caso estudado por Badiou, citaremos Myriam Revault d’Allones), concebem a política segundo pressupostos que configuram um edifício em tudo contrário à visão de Badiou, que vai rejeitar estes filósofos políticos (ressalvando os contributos de Arendt, nomeadamente nos estudos sobre o imperialismo, veja-se a segunda parte de The Origins of Totalitarianism), acusando-os de darem corpo ao que, precisamente, não pode ter o nome de política: o primado da particularidade conjugado na faculdade de julgar e a discussão como disjunção da verdade – disjunção discussão/verdade que Badiou considerará, para começar, de extremo «mau gosto».

Para Badiou, com efeito, não há antinomia entre verdade e discussão; note-se que, em Kant (matriz das «filosofias políticas» e «do» político), um enunciado científico não pode ser um juízo; assim se separa da discussão e do juízo um dos quatro procedimentos da verdade para Badiou – neste caso, a ciência. E daqui nascerá, portanto, a disjunção arendtiana (e neokantiana) da discussão/verdade. Isto como se um enunciado científico, que é uma prescrição de verdade (prescrição que configura uma nova situação, a qual esperará, a seu tempo, por um nova ou subsequente irrupção evenemental), não surgisse acompanhado de inúmeras discussões. Já em The Life of Mind (1978), Arendt se pretende debater com as dificuldades inerentes à contradição entre julgar, que é sempre julgar uma coisa particular e em particular, e pensar, que significa generalizar. E é em Kant que encontra as soluções que necessita: através das noções de natureza humana e finalidade, ou não-finalidade, a qual é própria dos objectos de arte. Finalidade e não-finalidade, aí se afirma, são próprias da variedade natural e da variedade humana – assim os homens se preparam para o mundo da opinião e se sentem em casa na diversidade. Mas Arendt recorre ainda a um outro conhecido conceito de Kant: o de validade exemplar, uma proposta conciliatória entre juízo e pensamento, particularização e generalização. O que nos diz esta exemplaridade ? Que, por exemplo, há particularidades num objecto – seja, uma mesa -- que podem torná-lo exemplar ; Arendt: «um particular que, em sua própria particularidade, revela a generalidade que, de outra forma, não poderia ser definida».14

Diferentemente, Badiou não procura soluções para esta contradição entre juízo e pensamento. Pelo contrário, seguindo Platão, Badiou vai procurar aprofundar a separação e enfrentamento de ambos: não há nenhuma relação entre a verdade e a opinião, logo, como em Platão, também nunca a política poderá ser reduzida a uma «livre» emissão de juízos. Concretamente, não há nenhum texto platónico que reduza a política à «livre» expressão de opiniões. A redução da política à opinião não é platonista, ela é sofística e tem hoje expressão na política parlamentar vigente, que -- como em todos os tempos em que o não-integrado é soterrado – não é a única política existente. Resumindo, se para Arendt a esfera da opinião (pública, como se lhe chama) deve excluir a verdade, inversamente, em Badiou a verdade é incluída como o nome de uma prescrição e uma capacidade universal para o discernimento do bem e do justo. E Badiou vai mais longe: para além de referir que a redução da política à discussão e à opinião pública (que dispensa a verdade e recusa o entusiasmo de Saint-Just) mais não são do que préstimos ao poder regente da economia, pretende demonstrar que até mesmo neste contexto minimalista em que imergimos (o do voto) a discussão-verdade não anula a decisão-verdade. O que é óbvio todos os dias, na vida e na governação, se se quiser.

Sabemos que a essência da política, aquilo que a faz ser habitada por todos e para todos, não se pode reduzir a uma conversa de café baseada no gosto ou desgosto de alguns. Como tal, a política ultrapassa a dinâmica concordo-discordo e encaminha-se em direcção à excepcionalidade (que até o neoliberalismo descortina mesmo que em termos vagos) indecidível e inverificável, mas certamente externa a intereses particulares (algo que, entretanto, o neoliberalismo já não descortinará). A política é a possibilidade de romper o que existe, por isso tem de dizer: vive no teu tempo, mas não sejas seu servo.

Mas, para os arendtianos é necessário reabilitar a esfera da opinião, implementá-la, defini-la como futuro. Eis então uma pergunta pertinente: qual o propósito desta reivindicação do primado da opinião aparentar um desejo de algo «por vir» ? Ou seja, porque se pretende exaltar como utopia aquilo que já existe totalmente estabelecido e consolidado ? Prossigamos mais um pouco a análise deste establishment até uma realidade insofismável. É ela esta espécie de auto-negação do parlamentarismo: até mesmo a suposta abrangência da livre iniciativa e da livre escolha vai ser condicionada pelo Estado, através nomeadamente dos partidos políticos. A sacralização deste «pluralismo» tem três vértices: a opinião, o partido e o Estado – que se encarregam de tornar a democracia presa fácil da economia.

Depois da oposição entre Badiou e as «filosofias políticas» (de Kant a Arendt, passando por sucedâneos sem idêntica dimensão), sinteticamente analisada num plano teórico, passemos a alguns textos, conferências ou intervenções do autor que podem ser tomadas como ilustrações práticas e demonstrativas não apenas da crítica do capital-parlamentarismo15 e do sufrágio (dito) universal, como também, sobretudo, de visões alternativas: revisitemos a este propósito a discussão travada em 1993 com Ronald Rocha, dirigente do Partido dos Trabalhadores, articulista da revista Praxis e responsável editorial de Teoria e Debate, polémica reunida num livro de 199516 ; depois, façamos referência a duas fundamentais conferências de 2000, proferidas em Buenos Aires,17 onde Badiou aprofunda o tema da discussão brasileira e a desenvolve em torno das políticas alternativas emergentes (em nada convergentes com as dos actuais governos ditos de «esquerda»); por fim, acompanhemos a sua análise do processo eleitoral de 2002, em que os franceses votaram Chirac contra Le Pen.



9.2. A política hoje: massas, partidos, movimentos

Badiou visitou o Brasil em 1993, depois em 1996, proferiu conferências no Rio de Janeiro, S. Paulo e Belo Horizonte (recolhidas nos livros Para uma Nova Teoria do Sujeito e Conferências de Alain Badiou no Brasil18). Na decorrência da sua visita de 1993, envolveu-se numa interessante polémica escrita com o polítco e escritor «pêtista» Ronald Rocha: sobre as práticas e as possibilidades da democracia parlamentar, a esquerda partidária institucional, o seu «progressismo» e esperanças, o socialismo partidário, suas tácticas, oportunidades, etc. Badiou reafirmaria nesse confronto as suas teses referentes à confiscação das participações livres subsumidas aos interesses dos aparelhos partidários. Expôs o triângulo que o acompanhará e nele constituirá um central aparato crítico: indivíduos, participantes, nalguns casos em forma de movimentos sociais, sem todavia os confundir com movimentos em voga que espectacularizam interesses particulares (isto é, não os confundir com os elementos da ilusória desterritorialização que analisarei no próximo capítulo); organizações colectivas, sobretudo partidos; orgãos do poder de Estado (e recordemos a sua permanente acção excessiva, o «estado da situação», o «excesso do estado», de acordo com os desenvolvimentos do capítulo anterior). Os indivíduos e o seu espaço social são sujeitos a uma profunda coarctação pelos partidos/organizações; estes apenas aspiram conquistar o Estado – esta aspiração, paradoxalmente, é a garantia do statu quo (conquista-se aquilo que existe para que não deixe de existir, e a aspiração emancipatória é pulverizada e eternamente adiada); por fim, a relação triangular – indivíduos/partidos/Estado -- apenas se efectiva no voto, síntese única (impossível) da extrema complexidade da vida social.

Badiou mostrará a paralisia desta redução mínima, por sua vez totalmente dependente do que o Estado designa consensualmente – esse consenso é a regra universal que determinará o que é e não é uma representação (sempre segundo o Estado). Os indivíduos permanecem bloqueados entre os seus interesses particulares e os das organizações em particular, ou, de outro modo, as organizações representam e os indivíduos adaptam-se (à representação previamente consensualizada). A efetividade desta síntese muito deve, como vimos, à dinâmica da situação, à sua necessidade de total inclusão, ou, seguindo termos já propostos, à necessidade de fazer coincidir a inclusão com a pertença (excesso que inevitabiliza o próprio «processo acontecimento-verdade» [de novo, ver Diagrama 3 e Diagrama 4] ).

Ronald Rocha contesta Badiou com argumentos mais originais e estimulantes, sublinhe-se, do que os já conhecidos em tradicionais dirigentes fiéis a projectos programáticos «piramidais». Começa entretanto por referir-se à complexa teia das relações entre partido e Estado (mesmo na oposição, o partido divisa o Estado – por isso pode Badiou dizer que o voto é um acto de Estado); diz Ronald Rocha, em síntese: há mais dados em causa num processo eleitoral do que a simples manutenção da ordem dominante; o quotidiano é complexo, mas a construção de Badiou é excessivamente formalista; o processo eleitoral não é um fim em si mesmo, é uma situação transitória e uma estratégia de trabalho que não tem que ter como único fito a tomada do aparelho do Estado. O processo eleitoral não pode conduzir à transformação social (no que coincide com Badiou), mas pode reunir energias dispersas e úteis a uma clarificação emancipadora num dado momento histórico e colectivo. Observações extremamente pertinentes, com efeito. Mas, se o processo eleitoral é uma transição para algo (e reconheceremos o facto, concordando com R. Rocha, de que não se esgota na luta pelo Estado), teremos contudo de considerar um fundo teleológico nesta argumentação. Além disso, o processo eleitoral não é sentido pela maioria dos seus participantes e coordenadores como uma reunião e agrupamento de forças de emancipação. Além do mais, trata-se de um processo antitético à irrupção do acontecimento: não prevê a sua emergência (porque não pode apesar de desejar prevê-la), nem a sua energia de separação. R. Rocha, diferentemente, embora defendendo as suas posições de forma notável, à separação «estelar» do acontecimento (ou ruptura fundadora proveniente do vazio), preferirá uma «reunião» de iniciativas apontando para uma evolução progressiva. Teremos aqui de questionar se esta evolução é ou não teleológica, e se, consequentemente, oscilará ou não entre o vazio (ou melhor, o apagamento que qualquer processo eleitoral não deixa de inscrever sobre o anterior) e uma espécie de «totalitarismo finalista». A discussão está aberta, mas temos a certeza que uma teleologia da «evolução» parece predeterminar o vivido.

O processo eleitoral é então um «meio» para quê ? Que relação pode haver entre voto e emancipação ? O que representa para a esquerda partidária o carácter eminentemente antiteleológico do acontecimento (que é activo e subtractivo) ? Qual é, para um dirigente partidário, o papel do acontecimento na emancipação ? É sequer pertinente o conceito de «emancipação» ou apenas reconheceremos o «progresso» (que tudo parece unir num fluxo sem conflitualidade) ? Questões que o mecanismo do voto nos obriga a colocar e que Badiou discute com Ronald Rocha num livro interessantíssimo e infelizmente muito pouco divulgado.

A este propósito, Badiou desenvolverá um fulcral raciocínio especulativo (para citar o título de um capítulo fundamental de Abrégé de Metapolitique) em duas conferências proferidas em Buenos Aires, em Abril de 2000. Aqui regressaremos a uma refutação cimeira, consubstanciada nas fórmulas: o voto não é um acto político, não é, de maneira nenhuma, um acto da política (será, quando muito, um acto importante para a «filosofia política»); o voto «é um acto importante, mas não é mais do que um acto estatal. E, por conseguinte, há que distinguir um acto político de um acto estatal».19 O acto de votar não é político, porque não é exercido em liberdade: porque é sempre o alicerce de uma eterna confirmação, o voto certifica que tudo seguirá o seu curso de sempre (governo/oposição, e para cada um destes pólos há um e só um perfil). Em absoluta divergência, um acto político tem de ser livre, o que quer dizer que tem de poder «criar tempo e espaço». Neste momento histórico, a pergunta política mais importante é esta: saberemos ou queremos criar tempo e espaço para além das condicionantes do mercado e do capital ? Neste contexto sublinhe-se que mesmo que as actuais indústrias da cultura e do lazer-turismo simulem este «novo espaço e novo tempo» ao alcance de todos, o problema é decisivamente diferente, como é natural: trata-se, em Badiou e igualmente no nosso entendimento, da possibilidade de não ser escravo, ou, muito concretamente, de não ter de partir da economia como única realidade. Hoje e historicamente, a resposta passa por saber o que é a política depois de Spartacus, Thomas Müntzer, Saint-Just, Robespierre, Auguste Blanqui, Eugène Varlin, Marx, Engels, Bakunine, Lenine, Trotsky, Rosa Luxemburgo, Mao, Maio de 68 e subcomandante Marcos.

Badiou propõe três estratégias para uma resposta evenemental (política, em suma): em primeiro lugar, proceder a uma reflexão sobre a relação entre massas e movimentos, em que «movimento» apenas deve sinalizar (1) algo não concordante com a ordem que se perpetua, uma ordem que estipula como imoral e totalitário criticar a democracia; em suma, a dissenção iniciada pelo movimento é uma dinâmica aberta e de desfecho claramente imprevisível; (2) movimento tem de ser um passo acrescido em direcção à igualdade, ou seja, como o acontecimento, um movimento também não dependerá de nenhum interesse particular. Em segundo lugar, há que repensar no significado do poder de Estado, e aqui considerar que o Estado não significa apenas polícia, justiça ou aparelhos repressivos, ele é constituído, sobretudo, pelo poder da economia. Em terceiro lugar, proceder-se-á a uma crítica dos partidos políticos. Estes autodefinem-se como organizações autorizadas a ocupar funções dentro do Estado e para o Estado. Esta é a grelha proposta para pensar o futuro da política, e nela inscreve Badiou aquilo que considera a ideia central de todo o século XX: o partido foi sempre o intermediário entre o movimento e o Estado.

O partido pode ser representativo (agente de negociação) ou revolucionário (quando presume representar uma classe que deve predestinadamente apoderar-se de todo o Estado). Na história política do século passado, facilmente se depreende que o movimento não foi tido como um sujeito autonomamente válido, porque necessitou sempre do partido como activante da sua representacionalidade. O diagnóstico do autor não é menos claro nem dificilmente confirmável: é indiscutível que se chegou hoje à crise desta triangulação por causa da crise do partido como única mediação aceite. E então poderá despontar alguma forma de mediação para além do partido ? Ou seja, pode o movimento dialogar com o Estado directamente ? A política deve ser, por isso, o pensamento da articulação e rearticulação dos vértices deste triângulo movimento-partido-Estado. O que significa termos uma conclusão antecipada para escapar aos raciocínios viciados do presente: o problema central da política não é a oposição democracia/totalitarismo. Vejamos uma simples demonstração da validade desta tese, ainda que, ou por isso mesmo, através dos que lhe são distantes: até mesmo os ideólogos neoconservadores consideram que a emancipação (uma certa forma de emancipação) é a questão-chave do momento, nem que seja para alimentar as chamadas «guerras democráticas», do Médio Oriente à China. Mas a diferença em relação a Badiou é radical (na falta de melhor termo): este pensa na emancipação como a consequência da reequacionação do papel dos movimentos, ou melhor, das movimentações genéricas; os neoconservadores ignoram o real e o mundo: para eles, que na realidade são os predadores gestionários do Estado, a emancipação é sempre a obra de um exército de invasão, concretamente no tempo e no lugar que os Estados Unidos determinarem.

Badiou analisa a história do partido considerando-o, na sua crise, o cerne da actual crise da política: «neste aspecto, podemos dizer que há uma diferença entre o século XIX e o século XX. O século XIX, de uma maneira geral, propõe uma política revolucionária operária, dirigida directamente contra o Estado, enquanto o século XX foi propondo uma política de partidos cujo objectivo era o Estado, subordinando o movimento ao Estado».20 Apesar das suas ideias grandiosas e das suas exemplares insurreições (1848, Comuna de 1871), quer o modo revolucionário do século XIX, ou o do século XX, alicerçados num partido comunista centralizado, não são mais válidos. Contudo, são ainda a matriz de uma nova política organizada de emancipação; considerando-se, desde já como ressalva, que a organização não implica directamente um «partido». Badiou sustenta que uma retrospectiva histórica das lutas de emancipação (desde Spartacus e Müntzer) não pode ser soterrada, como muitos hoje pretendem, no colapso da forma «partido». Sejamos sérios, a emancipação ou a história de Spartacus ao Maio de 68 não é a origem do totalitarismo, nem dos impasses do presente, e não é de espantar que os governantes da economia presente se apressem a culpar este esforço e seus protagonistas – porque é uma forma de ocultar que, em troca, apenas podem oferecer a imagem de uma humanidade que se confunde com um grupo de animais competitivos. Uma humanidade animal, rendida à ideologia respeitável e «politicamente correcta»: parlamentarismo, economia, segurança, «último homem».

Mas, voltemos à crise do partido como exclusiva mediação. Daqui se deve imediatamente concluir que não é o conceito de revolução que está em crise, porque esta não foi a figura política dominante no século XX. Como disse, nos últimos cem anos vigorou o «partido», representativo (nas economias liberais) ou de Estado (o qual, por sua vez, ocupou o lugar da «revolução», comandou-a, geriu-a, julgando erradamente ser essa a sua tarefa). Mantemos por isso a pergunta: como prosseguir hoje uma política de emancipação ? Se a emancipação já não se consubstancia nas lutas operárias do século XIX, nem no partido centralizado do século XX, como será essa «nova» emancipação cada vez mais espelhada numa política sem partidos ? Ao se falar em organização sem partidos outra pergunta se desprende: o que é uma organização política ? Seja qual for a resposta, ela passará pela presença de uma força subjectiva afastada do Estado. Logo, a política pode refundar-se por meio de movimentos que se articulam e existem duplamente distantes: distantes de qualquer poder e do Estado, propondo uma espacialidade e temporalidade descondicionada. Enfim, persegue-se a substituição da «política impaciente dos partidos pela política paciente dos movimentos».21 Esboço inicial de um percurso diferenciado, eis o novo espaço e tempo da política:



não estar no tempo dominante implica, efectivamente, não estar no tempo da informação jornalística. O partido era propagandista, porque pensava que o importante era que se falasse dele. Essa é uma ideia típica da representação: a força que têm mede-se por aquilo que de vocês dizem. Não existe quem não é falado. Mas há que aprender a existir, inclusivamente, no silêncio, porque o tempo da informação não é o tempo da política livre. Sabemo-lo, sabemo-lo perfeitamente. O tempo da informação, em si mesmo, é um tempo comercial, e a política da emancipação não pode inscrever-se no tempo comercial. Nem, tão-pouco, pode estar nos lugares oficiais. Tem antes que eleger lugares políticos que lhe sejam próprios. Esta construção do tempo, esta construção colectiva do tempo, é uma determinação do sujeito político actual.22



Historicamente, sabemos que nunca houve nenhuma transformação social sem esta dupla distanciação. Contrariando o poder exercido e os interesses específicos do Estado, esta «distância política» é o motor do acontecimento, porque «o acontecimento político é algo que permite a cada um manter-se à distância do Estado, retratando nesse afastamento o real poder» do Estado. Esta distância tem outro nome: a perda do medo. A política é aqui a possibilidade do fim da escravatura e o fim do medo. Esta distância assinala uma capacidade de fixar/determinar a natureza do poder: distanciarmo-nos sinaliza perscrutarmos o funcionamento do tipo de poder existente. E daqui não advém apenas a perda do medo, surge sobretudo uma espacialidade inovadora, inventada. Exemplo ? A revolução russa de 1917 foi preparada inicialmente pela distância em relação aos orgãos do poder do Estado cavada pelos sovietes desde 1905, distância que impulsionaria uma acção rápida nas cidades contra um Estado fraco (fraqueza que só a distância poderia divisar). Na revolução de Mao, a distância em relação ao Estado chinês, então um Estado forte, levou os insurrectos ao exílio no campo, preparando-se daí para um longo combate (a invenção da figura «Longa Marcha»): novo espaço, nova temporalidade, supressão, nesse novo território, do medo do Estado. Um exemplo recente é o de Marcos em Chiapas, que à guerra prolongada de Mao tem preferido estrategicamente uma negociação armada prolongada, num novo espaço e tempo por ele (colectivamente) criado.



9.3. Elogio da heterogeneidade (além do parlamentarismo)

Pensemos agora nas eleições presidenciais francesas de 2002. Esta epopeia salvífica, que durou de Abril a Maio do mesmo ano, é assim resumida pelo autor com toda a frieza: «A 5 de Maio Chirac é eleito com uma percentagem soviética, Le Pen estagnou, e a emoção dissipou-se no ar como bruma».23

Badiou começa por dizer que irá considerar, nesta peripécia do parlamentarismo francês, a emoção insomníaca dos seus concidadãos, examinando essa imensa afectação pública nas suas causas e consequências. Qual foi entretanto a causa desta afectação transbordante ? Na primeira volta das eleições, no segundo lugar onde se esperava Lionel Jospin, apareceu Le Pen. Digamos que esta afectação proveio de um retrato dos factos entre a ameaça («há que ter medo deste resultado») e a repulsa («há que ter vergonha»). E alicerçou-se numa postura de legítima defesa: da democracia e da República. O calmante simbólico para tanto pânico foi o voto em Chirac. Obtém-se daqui a seguinte fórmula francamente embaraçosa: onde deveria estar Jospin, estava Le Pen, e depois quando deveria abster-me ou votar Jospin, tive obrigatoriamente de votar Chirac. Badiou revela o jogo viciado da democracia e o absurdo do voto calmante: ora bem, não foi efectivamente incómoda a percentagem de Le Pen, foi incómodo, sim, o seu segundo lugar, sabendo nós que um segundo lugar é, por si só, uma «possibilidade de poder». Deste modo, o jogo democrático existente não tem fundamento, pois apresenta-nos o segundo lugar como uma coisa pré-codificada – um segundo lugar só pode pertencer a alguns, é uma relíquia a proteger dos infiéis. Então, o capital-parlamentarismo é norteado por um princípio de homogeneidade e por uma inqualificável pré-codificação. Daí o indiscutível constrangimento da «pluralidade»: o que importa é somente aquilo que é partilhado por Chirac e Jospin, «senso comum» (e «comunicabilidade») que será sempre convocado em face de qualquer ameaça heterogénea, seja Le Pen ou a trostkista Arlette Laguiller. Assim, a democracia é a melhor garantia social de que nada em nenhuma sociedade irá mudar: haverá sempre uma frente de opinião pública quer contra um canalha (Le Pen), quer contra a «ameaça vermelha».

Complexifiquemos um pouco mais a análise desta máquina de homogeneização. Porque é um dos seus protagonistas, Le Pen integra obviamente o parlamentarismo francês. Ora, se Le Pen é homólogo ao parlamentarismo, a verdadeira heterogeneidade (que suscitou pânico) nunca pode residir nele. Considerá-lo como tal é, de facto, um absurdo. Deste modo, são os eleitores participantes no processo eleitoral que têm de se envergonhar de Le Pen, e não os abstencionistas. Estes estabelecem-se então como os verdadeiros representantes da heterogeneidade política. Com efeito, não há diferenças substanciais entre Le Pen e os democratas de esquerda ou de direita. Senão vejamos. O que representa e qual é o discurso de Le Pen ? O mesmo que o de Pétain, o do arcaísmo nacionalista que contemporizou com o nazismo em nome de uma abjecta segurança e que diz: é preciso continuar a viver e fechar os olhos às atrocidades. Não se passa o mesmo com os democratas ? Ambos querem hoje e para sempre uma pequena felicidade negativa sem projecto nem ideias. Não se apresentam pela negativa os chamados direitos do homem na sua barragem contra o Mal (Direito a não ser torturado, degradado, etc) ? É esta lei dos direitos ao não-Mal que Badiou analisará noutro importante livro,24 e aí me deterei no próximo capítulo, analisando concretamente os pseudo-direitos multiculturais do que se designa como Outro (passando por textos de Antonio Negri, Deleuze, Derrida, Levinas, Slavoj Žižek, Fredric Jameson e, claro, Badiou). Concluindo, votando Chirac, amando sinceramente a segurança democrática e o «direito à vida», todos se modelam pelo «último homem» de Zaratustra:



Eu digo-vos: é preciso ainda ter caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante. E digo-vos: ainda tendes caos dentro de vós.

Ah! Está a chegar o tempo em que o homem não gerará mais nenhuma estrela. Ah! Aproxima-se o tempo do homem mais desprezível, que já nem é capaz de se desprezar a si próprio.

Vede! Vou mostrar-vos o último homem.

«Que é amor ? Que é criação ? Que é anelo ? Que é uma estrela ?» -- eis o que o último homem pergunta, piscando os olhos.

A terra, então, já se tornou pequena, e sobre ela saltita o último homem, que torna tudo mais pequeno. A sua espécie é inextinguível, como o pulgão; é o último homem quem vive mais tempo.

(...)

Nem pastor e um só rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais; quem tiver um sentimento diferente vai voluntariamente para o manicómio.25



Regressemos ao Abrégé de Métapolitique, precisamente à reflexão sobre o primado do Mal na definição da essência das democracias, ou seja, concluamos que é a definição de Mal a base que cimenta as actuais «políticas». Pretende-se através da nossa conhecida «pluralidade» estabelecer consensos e uma nova teologia que separa a «opinião legítima» da «opinião ilegítima». A este propósito, falará Hannah Arendt de «senso de comunidade» (The Life of Mind), «comunicabilidade» (quanto menos idiossincrático for um discurso melhor pode ser comunicado) ou «senso comum»: «Kant observa que o Belo nos ensina a amar sem proveito próprio (...) E a característica peculiar deste interesse [deste amar sem proveito próprio] é que “interessa somente em sociedade”».26 Resposta de Badiou:



Com a «comunicabilidade», supomos que a pluralidade das opiniões não está assim tão expandida que não possamos supor entre elas o homogéneo. Mas cada um sabe por experiência que é inexacto, que não discutimos com uma opinião realmente outra, que podemos, quando muito, combatê-la. Com o «senso comum», damo-nos uma norma na realidade transcendente, porque supomos, não apenas a pluralidade, mas uma unidade subjectiva, pelo menos de direito, dessa pluralidade. 27



Quando os direitos humanos se mostram como os direitos ao não-Mal e à segurança a todo o custo, tal configurando o único programa «político» admitido, a política, consequentemente, torna-se exclusivamente um campo de resistência ao Mal. E o que é o Mal neste contexto ? É aquilo que coloca em causa o em-comum (ou seja, o «senso comum»). Pensando deste modo, deduziremos que só depois de fixado e impedido tal «advento» do Mal se vai discernir o que quer que seja relacionado com o Bem. Isto é um erro gravíssimo para Badiou, pois transporta o Mal para o exterior do pensável: o nazismo, por exemplo, nestes termos não seria pensável; para alguns, sucede agora o mesmo com o «terrorismo».

Vejamos de perto o problema, partindo da errada redução do nazismo ao «impensável». O autor desenvolve o tema no recente Le Siècle. Dizer que algo é impensável é prosseguir a antiga identificação teológica do Mal ao não-ser. Só que politicamente as consequências são desastrosas – para o pensamento, para a história e para a sociedade no seu todo, digamos. Porque não pensar o que se comodamente se descreve como «impensável» é permitir que ele regresse, é «proteger a repetição».28 Logo no início de Le Siècle, questiona-se Badiou: como definir o século XX ? Como definir um século ? Cita-se a irónica questão de Genet: o que é um negro ? E além disso, de que cor é ele ? O século XX comporta várias visões: «século soviético», «século do crime» ou das barbáries de estado, «século do liberalismo triunfante», do «consenso democrático», etc. Como pensá-lo portanto ? Escolhendo apenas um destes tópicos ? Certamente que não. O que pensar então destes cruzamentos ? Badiou propõe que se pense o modo como o século pensou ele próprio a sua singularidade, e começa pelo exemplo que as democracias, de certo modo, interditaram: qual foi o pensamento dos nazis ? Para Badiou aqueles que dizem que o nazismo é o «impensável», mais não fazem, no fundo, que o inocentar. E inocentando-o escodem as ligações entre a barbárie e as ditas democracias. Porque o Outro das democracias é rasurado, desaparece, supõe-se. Pura ilusão – não o pensar, reduzi-lo apenas à memória é permitir o seu retorno. Daí a conclusão: «a interdição de uma repetição vem do pensamento e não da memória». Portanto, para todo o χ há um pensamento. Quer dizer, o Mal (seja lá o que isso for) tem de ser reconduzido à política, isto é, a política pode e deve pensá-lo, precisamente porque, no território político, dizemos que uma «má» política apenas pode ser combatida com outra política, quer dizer, com um trabalho em torno a uma política radicalmente diferente e melhor. Para tal é preciso um esforço diário do pensamento empenhado em «tomar partido» organizadamente, mas sem partidos. Por este motivo, entre outros (e depois de um trajecto inicial no maoismo), irá o autor (re)aproximar-se de Mao Tse Tung, para quem a dialéctica não deve terminar na síntese: o statement de Mao «se tens uma ideia deves dividi-la em duas», é um princípio inalienável.29



9.4. Pluralismo ? Não, obrigado!

Tomando então partido, Badiou opõe-se genericamente: ao relativismo pós-moderno («niilismo passivo») e ao desconstrutivismo (que é teológico); à democracia liberal; ao linguistic turn anglo-saxónico; à filosofia política demo-liberal (para Badiou, a política, como a arte, a ciência e o amor, é ela própria uma verdade – não deve ser pensada do «exterior»); ao eixo que vai do existencialismo heideggeriano ao neokantismo de Hannah Arendt; em suma, à ética generalista e ao refrão dos direitos humanos. Instâncias que apenas conduzem ao «não-Mal», como lemos em L’Éthique: «o cerne da questão é a suposição de um Sujeito humano universal, capaz de ordenar a ética segundo os direitos do homem e as acções humanitárias. Vimos entretanto que a ética subordina a identificação deste sujeito ao reconhecimento do mal que lhe é feito. A ética define assim o homem como uma vítima».30 O que é inaceitável para o niilismo activo, vitalista, de Badiou.

Estamos na companhia de Platão (salvo por Georg Cantor, diz F. Wahl no prefácio a Conditions31), Descartes e Lacan, contra Wittgenstein, Heidegger, e, de certo modo, Derrida e Lyotard. As figuras políticas de Badiou são: S. Paulo (por ter separado uma nova «religião-partido-materialidade» de um aprisionamento geográfico e identitário, por ter estabelecido os parâmetros de «decisão do pensamento» e os critérios da verdade); Saint-Just e Lenine (pela «paixão do real») e Mao Tse-Tung (pela dialéctica enquanto contradição sem solução).

Não tomando partido, no sentido institucional, Badiou criou em 1984, com Sylvain Lazarus e Natacha Michel, a «Organization Politique», associação livre para as políticas de habitação, fábricas e imigração. Os seus inequívocos princípios abrem a homónima página de Internet: «Sem partido; sem eleições; sem submissão aos Estados; sem necessitar da China ou da URSS; sem organizações piramidais; sem comunidade nem religião; sem servir de força de oposição aos partidos no terreno; com o ponto de vista das gentes; com as gentes como todo o mundo; com os trabalhadores; com os ilegais (sans papiers); com as batalhas políticas; com os processos organizados; com o nosso pensamento; com “Organization Politique”, discutindo».32

Tomar partido e assumir compromissos públicos – é o que faz o autor em «Organization Politique» e numa imprescindível sequência de livros inaugurada em 2003, Circonstances, de que já saíram dois pequenos volumes.

Estes volumes fazem jus, em primeiro lugar, ao seu título genérico, mas creio que o seu maior mérito é o estabelecimento de ligações extremamente produtivas entre análises conjunturais e os conceitos operarativos principais do autor, relevando a conjuntura à exemplificação (mas sem «ilustratividade») ou percepcionando na conjuntura, digamos, eixos coincidentes com a conceptualização filosófica. Tivemos mesmo a oportunidade de analisar a situação filosófica [ Diagrama 7 ] correlacionando-a com a (sua) matriz que é a filosofia enquanto pensamento sobre a compossibilidade da verdade, isto a partir de um ensaio «argentino» integrado no último Circonstances, «Préface – circonstances et philosophie».33 Estudo circunstancial foi igualmente o dedicado à eleição presidencial francesa de 2002, há pouco destacado. A que juntaremos outros: dedicados ao conflito NATO/Sérvia sobre a questão do Kosovo; ao 11 de Setembro (este em Circonstances 1, onde lemos: «se existe uma potência imperial única e permanentemente convencida de que os seus interesses mais brutais coincidem com o Bem; se é verdade que os Estados Unidos despendem todos os anos, em orçamento militar, mais do que a Russia, China, França, Inglaterra e Alemanha juntas; se esse Estado dedicado à desmesura militar não tem outro ídolo que não a riqueza, não tem outros aliados que não os seus servos, e não vê nos outros povos senão mercados, indiferente e cinicamente; então a liberdade elementar dos Estados, dos povos e dos indivíduos, é a de tudo fazerem e de tudo pensarem para se subtraírem, sempre, às ordens, às intervenções e ingerências dessa potência militar»); 34 em Circonstances 2, há um notável ensaio sobre a guerra americana no Iraque; um artigo sobre a proibição do véu islâmico em França (onde a tese defendida pode assim resumir-se: cada um tem as guerras que quer e pode -- uns destroem na totalidade o Iraque e o Afeganistão, outros guerreiam os véus caseiros); e um esboço de um originalíssimo projecto de «união» entre a França e a Alemanha. Ainda neste tomo 2 de Circonstances deve destacar-se um indispensável «Manifeste de l’affirmationnisme», onde se defendem 15 teses para a arte contemporânea, das quais se destacariam para já, sem comentários (desnecessários, como se perceberá), duas das três últimas; nº 13:



Hoje, a arte faz-se apenas a partir do que, para a Comunicação (medium e comércio), não existe ou quase não existe mais. A arte constrói de uma maneira abstracta a visibilidade dessa inexistência. (...)



E nº 14:



Convencido de que controla toda a extensão do que é visível e audível, através das leis comerciais da circulação e das leis democráticas da comunicação, o poder contemporâneo não necessita da censura. Ele diz: «Tudo é possível». O que quer dizer que nada o é. Abandonar-se a essa autorização de tudo fruir é a ruína de toda a arte, como de todo o pensamento. Nós devemos ser, implacavelmente, os nossos próprios censores.35



9.5. Capitalismo, em resumo ....................

Voltarei à questão da arte, detalhando a defesa por Badiou de uma inestética. Gostaria agora de citar largos excertos de uma marcante entrevista do autor a Cabinet, de 2001, agrupando-os por tópicos que, de certo modo, enfatizam e resumem os ensaios de Circonstances, sublinham a sua oposição frontal à ideologia «capital-democrática», testemunham o seu activismo contra a «ética» e os «valores» do capitalismo, almejando uma desmistificação do fim da história enquanto vitória do «bem» neoliberal.

Comecemos pela denúncia da criminalidade «oculta» do ocidente democrático:



O capitalismo é injusto. Mas não é criminoso como o estalinismo. Deixamos milhões de africanos morrerem de sida, mas não fazemos declarações nacionalistas e racistas como Milosevic. Matamos iraquianos com os nossos aviões, mas não cortamos as suas línguas com machetes como se faz no Ruanda, etc. (...) O refrão dos «direitos humanos» não é outra coisa que não a ideologia do moderno capitalismo liberal: não vos massacramos, não vos torturamos em cavernas, portanto, estejam muito quietos e continuem a adorar o bezerro de ouro.



Sobre o «fim da história», ou sobre a história como luta do Bem e do Mal redundando na vitória do Bem, sofística abjecta que descreve uma rendição satisfeita ao mais forte. Primeiro, uma descrição:



1. A história mostrou-nos que o capitalismo liberal democrático é o único regime político e social verdadeiramente humano, o único que verdadeiramente se adequa ao Bem da humanidade.

2. Todos os outros regimes políticos são ditaduras monstruosas e sangrentas, completamente irracionais.

3. A prova deste facto reside na partilha da mesma face do Mal entre todos estes regimes que combateram o liberalismo e a democracia. Assim, o fascismo e o comunismo, que aparentemente se opõem entre si, são de todo similares. Pertencem ambos à família «totalitária», que, por sua vez, se opõe à família das democracias capitalistas.

4. Estes regimes monstruosos nunca podem produzir um projecto racional, uma ideia de justiça ou algo dessa natureza. Aqueles que alguma vez lideraram um desses regimes (facistas ou comunistas) foram necessariamente casos patológicos: precisamos de estudar Hitler ou Estaline com as ferramentas da psicologia criminal. Aqueles que alguma vez os apoiaram, e tiveram milhares de apoiantes, eram seres alienados pelo misticismo totalitário. Em suma, eram pessoas conduzidas pelo Mal e por paixões destrutivas.

5. Se milhares de pessoas se prestaram a participar em tais ridículas e criminosas empresas, isso é porque, obviamente, a possibilidade de ser atraído pelo Mal existe em cada um de nós. Esta possibilidade será chamada de «ódio pelo seu semelhante». A conclusão disto será que, em primeiro lugar, teremos de apoiar a democracia liberal em todos os pontos, e, em segundo lugar, deveremos ensinar as nossas crianças a amar o seu semelhante.



Passemos para esta resposta à descrição:



Trata-se de «raciocinar» numa pura ilusão ideológica. Primeiro, o capitalismo liberal não é o Bem da humanidade. Muito pelo contrário; é o veículo de um selvático e destrutivo niilismo. Segundo, as revoluções comunistas do século XX representaram esforços grandiosos para a criação de uma história e de um universo político completamente inovadores. A política não é a gestão do poder de estado. A política é, em primeiro lugar, a invenção e o exercício de uma realidade concreta absolutamente nova. A política cria o pensamento. O Lenine que escreveu O que Fazer?, o Trotsky que escreveu a História da Revolução Russa, e o Mao Tse Tung que escreveu Sobre a Justa Solução das Contradições no Seio do Povo, foram intelectuais geniais, comparáveis a Freud e a Einstein. Certamente, a política da emancipação, a política igualitária, ainda não resolveu, pelo menos até agora, o problema do poder de estado. Aplicaram um terror sem finalidade. Mas tal deve encorajar-nos a retomarmos a emancipação do ponto em que estas revoluções a deixaram, em vez de nos dirigirmos de braços abertos para o capitalismo e para o imperialismo inimigo.36



Para Badiou, o Mal é a nomeação forçada de todos os elementos (do presente e do futuro) de uma sequência de verdade, e é também a interrupção (traição, no fundo) dessa sequência. Claro é o exemplo dos «termidorianos» anulando o processo revolucionário entre 1794 e 1795; Badiou dirá: o «termidoriano» é «o nome de uma subjectividade ao mesmo tempo singular e típica, a subjectividade cujo espaço é a cessação»; o «termidoriano» é aquele que constrói a história ao revés (do fim para o princípio, digamos), e por isso interrompe um processo e a prescrição de uma sequência política considerando antecipadamente os resultados dessa sequência como desastrosos; ora, «uma sequência política começa e completa-se, sem que possamos medir a sua força real e pensante, nem no que precede nem no que se segue».37 Na entrevista a Cabinet parte-se desta posição para a rejeição da definição de Bem como simples não-Mal:



(...) é necessário propor uma nova teoria do Mal. Mas isso quer dizer, essencialmente, uma nova teoria do Bem. O Mal tem de harmonizar-se à questão do Bem. Desistir é sempre Mal: renunciar à libertação política, renunciar a um amor apaixonado, renunciar a uma criação artística ... O Mal coincide com o momento em que eu perco a força para ser fiel ao Bem que me compele. A verdadeira questão que sublinha a questão do Mal é a seguinte: O que é o Bem ? Toda a minha filosofia persiste nas respostas a essa pergunta.38



9.6. Pensar a política: pensar o marxismo

Por fim, comentaria alguns aspectos do Diagrama 8, desenhado para a compreensão de um tópico recorrente em Peut’on Penser la Politique (1985): o da situação e balanço, actual e histórico, do marxismo. Aquilo que Badiou designa como «crise do marxismo» num tempo histórico muito problemático (meados dos anos 80, período que exponenciou as variantes mais neoconservadoras da pós-modernidade), época assim descrita no início do livro:



No meu país, que dela foi – pelo menos desde 1789 – o lugar por excelência, nesta França onde a querela irreconciliável atestava que todo o sujeito aí era politicamente prescrito, surge hoje em dia isto – a política entrou na aparência da sua ausência.

Mesmo quando ela é mencionada, referida àquilo que se passa – eleições, parlamento, sindicatos, presidência, declarações televisivas, viagens pomposas – cada um sabe (...) que se trata de uma cena desafectada, de onde vêm certos signos, signos cuja uniformização é de tal ordem que aí não se pode encadear senão um sujeito automatizado, desimpedido de todo o desejo.39



Palavras escritas num tempo de «fim da história», relembremo-nos como se dizia então, um tempo de culpabilização compulsiva de toda e qualquer forma de emancipação, farsa de um triunfo operático do Bem e exclusão de todo e qualquer sinal de heterogeneidade política. Não é obviamente munido desta desafectação frívola, «finalista», que Badiou vai analisar a «crise do marxismo». Sabemos desde o princípio que o seu mundo é outro. Não poderia abominar mais, como Deleuze, a imbecilidade dos «novos filósofos» de finais de 70. Passemos então ao que importa. Segundo Badiou, a «crise do marxismo» sinaliza o final da sua primeira fase; entretanto, para a análise desta consumação, digamos assim, é o próprio marxismo que fornece as melhores ferramentas. A análise de Badiou tem dois tempos antecedendo uma conclusão; num primeiro tempo, Badiou, partindo da sua defesa da política contra «o» político (contra a «filosofia política»), confirmará que Marx materializa as várias linhas de força da política sem rendição «ao» político; num segundo tempo, concluirá como inerentes ao marxismo os malogros das formas institucionais de «marxização» dos movimentos de emancipação:



Da crise do marxismo, é necessário dizer-se hoje que ela é completa. Não se trata de um simples atributo empírico. É da essência da crise enquanto crise desdobrar-se até às suas últimas consequências, isto é, para o marxismo, entrar na figura do seu acabamento. E isso não sob a forma prometida de um acabamento conjunto de uma qualquer pré-história, mas, pelo contrário, na modalidade propriamente histórica do acabamento, quer dizer, no que fará do marxismo um dado, prático e ideológico, pura e simplesmente prescrito.40



Contudo, Marx continua a ser tomado como um pensador do acontecimento, pensador dessas ocorrências periódicas que escapam ao entendimento e mensurabilidade:



Ter designado que a política é irrepresentável, porque constrói o sujeito na ordem perceptível do sintoma [ ou seja, «acontecimento», «corte», «sintoma» que faz emergir os conflitos soterrados, um «sintoma de histeria do social» ], faz de Marx um pensador da política desembaraçada do político, do qual fixa a ficção.

Marx não se assegura de uma norma, mas antes de um «há» (il y a) do acontecimento -- que cruza uma realidade – inscrito no impasse de toda a ordem conhecida e representada. A verdade da política reside nesse «há» (il y a), e não nas suas ligações [ que, por sua vez, juntamente com o senso de comunidade e a comunicabilidade, são o fundamento da filosofia política ]. 41



Em resumo, Badiou dá por concluída a «velha» doutrinação marxista, pelas razões que proporei no Diagrama 8, e que assim se podem resumir: tal doutrina, partindo da forma estado, de uma pretensa ligação privilegiada entre o partido-estado e os movimentos operários (mas Gdansk, em 1980, é um dos muitos «acidentes» desta ilusão, por implicar um movimento operário contra o Estado) ou os movimentos anticoloniais (que deram origem ou se dissolveram em novas formas de estado), pretendeu representar as vítimas. Ora, não é esse o sentido da política para Badiou – como vimos, não se trata de representar as vítimas, mas de ser fiel ao acontecimento através do qual as vítimas se manifestam imparavelmente. Trata-se de uma relação inovadora entre a história e o real. Concluindo, para Badiou a renovação das políticas de emancipação parte da consciência da «crise do marxismo» e da fidelidade-decisão no acontecimento. Decisão, em suma, que «é sem promessa a nada e a ninguém, e une-se por uma hipótese. Trata-se da hipótese de uma política da não-dominação, da qual Marx foi o fundador e que urge hoje refundar». 42





10. Inestética: afim da inumanidade do Belo

Comecemos por uma pergunta genérica: no presente, o que sustenta uma evolução intemporal liberta da «opinião» ? Ou melhor, o que pode testemunhar que o nosso mundo ultrapassa a «opinião democrática» ? Questão para a qual não deixa de concorrer a inestética de Badiou.43 A arte é um dos campos do acontecimento-verdade, e só uma in-estética (e não a Estética) a pode acolher nas suas consequências plenas, sopesando o pensamento próprio que a arte nunca deixou de ser. Lemos em epígrafe no Petit Manuel d’Inesthétique: «por “inestética” entendo uma relação da filosofia com a arte que, supondo que a arte é por ela própria produtora de verdades, não pretende de forma alguma fazer dela, para a filosofia, um objecto. Contrariamente à especulação estética, a inestética descreve os efeitos estritamente intrafilosóficos produzidos pela existência independente de alguma obras de arte». Porque sabemos de antemão que a filosofia não é um dos quatro procedimentos de verdade (que são a arte, o amor, a ciência e a política), a ela cabe-lhe não produzir nem pensar em primeiro grau a verdade da arte, mas antes a análise da sua compossibilidade. Por isso a inestética recusa a estética, tal como a política verdadeira recusa a filosofia política, não oferecendo a arte à filosofia. Considerando esta prescrição de base, analisará o autor os anteriores paradigmas da relação arte/filosofia: didactismo, romantismo e classicismo.

A relação entre arte e filosofia é, desde sempre e marcadamente desde Platão, pontuada por uma luta de poder. Nomeadamente, pelo poder da filosofia para banir a arte da República e por uma subsequente vingança: intrínseca ao poder demonstrado pela arte para ocupar, no romantismo, o único lugar de produção da verdade. Até ao momento heideggeriano da poesia como a reserva da verdade do ser.

Após a exclusão dos poetas decretada por Platão, Badiou vai considerar, no seio da conflitual relação entre arte e filosofia, uma espécie de acordo de apaziguamento, um «tratado de paz». O seu promotor teria sido Aristóteles. Neste propósito, o destino da arte não é a verdade, mas a aparência. E o critério mais determinante passa por ser o da utilidade da arte: ela deve situar-se num plano ético, servindo para purificar as paixões (catarse), sem se ocupar do conhecimento. É o esquema clássico: caracteriza-se por uma separação entre a verdade e o verosímel. Ou seja, a verdade e o pensamento são matéria filosófica, a verosimilhança e a aparência são o espaço da arte.

No esquema didáctico, por seu lado, a arte não alcança a verdade, mas pode imitá-la eficazmente para fins extra-artísticos: assim, «o absoluto da arte reside no controlo dos efeitos públicos da simulação, eles mesmos normalizados por uma verdade extrínseca».44 Aqui a arte mimetiza a forma da verdade efectiva, a arte é a sedução do verdadeiro. Ou seja, a arte, enquanto mimesis, não é uma imitação das coisas reais directamente, ela é a imitação de um efeito de verdade: é uma falsa verdade, é a verdade apenas enquanto sedução, ou melhor, é uma aparência sedutora da verdade. Platão condena-a por isso mesmo: porque a arte é uma aparência sedutora da verdade, e por isso ela tem que ser vigiada pela filosofia. Neste esquema didáctico, primeiro a arte é condenada no seu plano de aparência, depois é reconvertida a uma função instrumental e educativa. A mimesis didáctica aproveita-se, digamos assim, desse efeito sedutor para o pôr ao serviço de objectivos extrínsecos.

No esquema romântico, como se sabe, só a arte pode alcançar a verdade (é o «absoluto literário» de Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, que no recente Au Fond des Images45 reitera tal relação entre imagem e sagrado). Badiou investe contra estes paradigmas que considera saturados ao longo do século XX, século conservador e ecléctico, que tentou um quarto paradigma sem sucesso – precisamente, sob a forma das «vanguardas». Esgotados no século XX os três paradigmas descritos anteriormente, «a situação global é finalmente a seguinte: saturação dos três esquemas herdados, encerramento de todo o esquema único tentado neste século, que era, de facto, um esquema sintético, o didáctico-romantismo».46

Como veremos, a vanguarda era sinteticamente didáctico-romântica por ser, antes de tudo, anticlássica. Anticlássicos, os vanguardismos promoviam em simultâneo os paradigmas didáctico e romântico: didácticos, porque pretendiam terminar com a arte alienada (de uma suposta realidade); românticos, quando pretendiam uma arte nova em absoluto e centro de uma nova sociedade. Fracassaram por isso ao serem colocados entre duas críticas: as revoluções políticas, exigindo à arte um determinado didactismo, condenaram nas vanguardas os seus restos de romantismo, a sua reivindicada autonomia estética e formalismo; o romantismo, condenou na vanguarda a sua propensão didáctica, a sua afinidade com os movimentos político-sociais. Pretendendo uma fusão entre didactismo e romantismo, as vanguardas não seriam uma coisa nem outra.

Prosseguindo a sua investigação e busca de um quarto paradigma, Badiou enumera o ponto de partida comum aos esquemas estudados: todos se ocupam e definem a partir da relação entre arte e verdade (relação e/ou oposição). Badiou vai considerar seguidamente as duas categorias que intervêm na relação entre arte e verdade: a imanência e a singularidade. A imanência proporciona o seguinte: inquirir se a produção de verdade é interior à arte; a singularidade questionará se a verdade artística é específica, ou se poderá o seu conteúdo ser veiculado por outro qualquer meio.

Onde fallharam, ou onde e porque se esgotaram, os três esquemas conhecidos ? Para Badiou, falharam por nunca terem conseguido trabalhar em simultâneo a imanência e a singularidade. Vimos que no didactismo e no classicismo a arte nunca alcança a verdade (logo, o plano da imanência está excluído); apenas no esquema romântico a arte se relaciona com a verdade. Mas trata-se de uma verdade absoluta, ligada ao dizer oracular do poeta: é «a» verdade sem singularidade.

O princípio básico da inestética de Alain Badiou é o de que a arte pode produzir verdades singulares: a verdade é imanente à arte e apenas através da arte pode ser veiculada (especificidade). Portanto, as verdades artísticas distinguem-se das científicas, amorosas e políticas. Qual é então o mecanismo de singularidade da verdade em arte ? Advém de uma contradição fulcral -- daquilo que balança entre o infinito da verdade (ela que é, como se sabe, uma multiplicidade infinita) e a finitude da obra de arte. Concretamente, a obra é triplamente finita: é uma objectividade finita (o poema, o quadro, etc); a «perfeição» que a arte convoca tem também um limite (o artista não é deus); por último, a obra de arte é um fim em si mesmo, a obra é a sua própria finalidade. O problema da verdade em arte pode ver-se sob esta inquirição: como é que uma finitude consegue incorporar a infinitude da verdade ? O risco desta incorporação do infinito num corpo finito reside numa exclusiva ou limitada revalidação do paradigma romântico. Mas há ainda um outro problema: sabemos que a verdade é infinita e a consequência de um acontecimento. Ora, se o acontecimento é a causa e a verdade a consequência, como é que a arte pode ser as duas coisas numa só ? A arte é, ao mesmo tempo, verdade e acontecimento ? Ou seja, a arte é a totalidade do acontecimento e de uma só vez ?

Como, segundo Badiou, a arte não é essa simultaneidade, cada obra só pode ser um momento do processo acontecimento-verdade. Cada obra é um ponto diferencial desse processo, aquilo que Badiou chamará de ponto-sujeito. A obra é, portanto, um fragmento finito de uma sucessão de obras que, partindo de uma ruptura (acontecimento), dá corpo a uma configuração. Por sua vez, cada configuração tornará obsoleta uma configuração anterior. Esta saturação ou obsolescência de uma configuração não define «configuração» como sequência finita. Como nada impede que hoje, por exemplo, se escreva música tonal, dizemos que uma configuração, qualquer configuração, é sempre infinita, porque nada no seu interior a limita.

























NOTAS



1. Teoria de que um dos textos fundadores é, de Cantor, Contributions to the Founding of the Theory of Transfinite Numbers, Nova Iorque, Dover, 1955. Algumas sínteses introdutórias podem ainda ser acedidas on-line, como por exemplo a da Stanford Encyclopedia of Philosophy, entrada «Set Theory», http://plato.stanford.edu/entries/set-theory.

2. Alain Badiou, L’Être et l’Événement, Paris, Seuil, 1988, p. 552.

3. Alain Badiou, Le Nombre et les Nombres, Paris, Seuil, 1990, p. 95.

4. Peter Hallward, Badiou: a Subject to Truth, Minneapolis, University of Minnesota Press, 2003, p. 81.

5. Alain Badiou, Manifiesto por la Filosofia, Madrid, Cátedra, 1990, p. 81.

6. Ibidem, p. 82.

7. Ibidem, p. 82.

8. Ver o excelente estudo de Badiou, Saint Paul: la Fondation de l’Universalisme, Paris, PUF, 1997.

9. Ver Badiou, Saint Paul, pp. 15, 16.

10. Robespierre, Pour le Bonheur et pour la Liberté (org. Yannic Bosc, F. Gauthier e S. Wahnich), Paris, La Fabrique, 2000, p. 183. Obviamente esta leitura terá de ser acompanhada pelos fabulosos (perdoe-se-me a adjectivação) discursos de Sain-Just, recolhidos em Œuvres Complètes (org. Michèle Duval), Paris, Ivrea, 2003.

11. É a base da argumentação crítica de Raoul Vaneigem, em Déclaration des Droits de l’Être Humain: de la Souveraineté de la Vie comme Dépassement des Droits de l’Homme, Paris, Le Cherche Midi, 2001.

12. Badiou, Manifiesto, p. 86.

13. Refiro-me ao capítulo inicial, síntese e imagem fiel de todo o livro, «Contra a “Filosofia Política”», em Compêndio de Metapolítica, Lisboa, Instituto Piaget, 1999, pp. 21-37.

14. Hannah Arendt, A Vida do Espírito: o Pensar / o Querer / o Julgar, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1991, p. 381.

15. Utilizaremos sempre, e com a frequência necessária, este termo do autor. Partilhando-o, obviamente. Badiou propõe esta definição de parlamentarismo: « -- subordina a política a uma única ligação estadual (o único acto político “colectivo” é o da designação do elenco governamental), e, procedendo desse modo, anula com efeito a política como pensamento. Donde, a personagem do parlamentarismo não é um pensador da política, é um político (dir-se-á hoje com facilidade: um “gestor”). – Ele exige como condição reguladora a autonomia do capital, os proprietários e o mercado. Convém por isso apelidar a nossa democracia, em nome da clareza da sua descrição, como capital-parlamentarismo.» Em D’Un Désastre Obscur: Sur la Fin de la Vérité d’État, La Tour-d’Aigues, L’Aube, 1998, pp. 36-37.

16. Alain Badiou (com Ronald Rocha), Política, Representação e Sufrágio, Belo Horizonte, Projeto, 1995.

17. Conferências datadas de 24 e 25 de Abril de 2000, reunidas sob o título «Movimiento social y representación política» na revista argentina Acontecimiento, 19-20, material disponível na Internet, juntamente com outros textos importantes do autor, como a tradução espanhola da introdução a L’Être et L’Événement (Acontecimiento, 16), a transcrição de uma conferência seguida de perguntas em torno de L’Être et L’Événement e Manifeste pour la Philosophie, texto originalmente publicado em Les Temps Modernes, 526, Maio, Paris, 1990, ou uma comunicação sobre o problemático tema dos «direitos humanos» apresentada na Universidad Popular Madres de Plaza de Mayo, 2000, etc. Tudo num pequeno e útil banco de dados dedicado a Badiou. Consultar: www.grupoacontecimiento.com.ar/documentos/badiou

18. Além do livro de Ronald Rocha supracitado, as visitas de Badiou ao Brasil deram origem a dois livros de recolhas de textos de conferências: Para uma Nova Teoria do Sujeito, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994 e, com organização de Célio Garcia, Conferências de Alain Badiou no Brasil, Belo Horizonte, Autêntica, 1999.

19. Badiou, «Movimiento social y representación política».

20. Ibidem.

21. Ibidem.

22. Ibidem.

23. Badiou, «Sur l’élection présidentielle d’Avril/Mai 2002», em Circonstances, 1: Kosovo, 11 Septembre, Chirac/Le Pen, Paris, Lignes & Manifestes/Léo Scheer, 2003, p. 14 (texto originalmente publicado em Lignes, 9, Outubro, 2002, com o clarividente título: «Considérations philosophiques sur la très singulière coutume du vote, étayées sur l’analyse de récents scrutins en France»).

24. Badiou, L’Éthique: Essai sur la Conscience du Mal, Paris, Hatier, 1993 – título que é sem dúvida uma das melhores escolhas para entrar no universo do autor.

25. Nietzsche, Assim Falava Zaratustra: Um Livro Para Todos e Para Ninguém, Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, p. 18.

26. Hannah Arendt, A Vida do Espírito, p. 380.

27. Badiou, Compêndio de Metapolítica, p. 30.

28. Badiou, Le Siècle, Paris, Seuil, 2005, p. 14.

29. O maoismo do autor é sistematizado em Théorie de la Contradiction -- da famosa colecção Yenan -- Paris, Maspero, 1976.

30. Badiou, L’Éthique, p. 12.

31. Cfr. François Wahl, «Le soustractif», em Alain Badiou, Conditions, Paris, Seuil, 1992, pp. 9-54.

32. Consultar textos, informações e intervenções públicas, na página on-line do movimento: www.organizationpolitique.com

33. Refiro-me, de novo, a «Préface-Circonstances et Philosophie», em Circonstances 2: Irak, Foulard, Allemagne/France, Paris, Lignes & Manifestes/Léo Scheer, pp. 9-19.

34. Badiou, Circonstances, 1, p. 65.

35. Circonstances, 2, p. 104.

36. Christoph Cox/Molly Whalen/Alain Badiou, «On Evil: an interview with Alain Badiou», Cabinet, 5, Outono, 2001, pp. 69-74 (on-line: http://cabinetmagazine.org/issues/5/alainbadiou.php).

37. Badiou, Compêndio de Metapolítica, pp. 150, 151.

38. Cox/Whalen/Badiou, «On Evil».

39. Alain Badiou, Peut-on Penser la Politique ?, Paris, Seuil, 1985, p. 9. [ em seguida PP ]

40. PP, p. 25.

41. PP, p. 20.

42. PP, p. 76.

43. Ver, sobretudo, «Arte e filosofia», em Alain Badiou, Pequeno Manual de Inestética, Lisboa, Instituto Piaget, 1999, pp. 11-29.

44. Ibidem, p. 12.

45. Cfr. Jean-Luc Nancy, Au Fond des Images, Paris, Galilée, 2003.

46. Badiou, Pequeno Manual de Inestética, p. 20.