Textos de apoio | TEMAS DA ARTE CONTEMPORÂNEA: Alain Badiou 1


Capítulo 1 de:

Carlos Vidal, SOMBRAS IRREDUTÍVEIS: Arte, Amor, Ciência e Política em Alain Badiou, Lisboa, Vendaval Ed., pp. 15-49.







Trabalhar-se-á de imediato no eixo central da filosofia de Alain Badiou: a denominar «eixo acontecimento-verdade».

Veremos como estes termos enfatizam o carácter clássico desta filosofia – neste ponto, a referência central é Platão, de quem Badiou herdará uma das suas militâncias: a oposição sem concessões entre verdade e opinião.

Depois, explicitarei que (e porque é que) em todas as situações há um potencial de inovação-transformação; o acontecimento surge desde aí – é uma força de transformação que escapa ao entendimento. O acontecimento é o par da verdade. Porque a verdade nasce sempre do acontecimento. É indecidível, irredutível a qualquer forma de conhecimento ou explicação, colateral a um vazio a denominar niilismo activo. Da Revolução Francesa a Lenine, analisar-se-ão alguns acontecimentos exemplares.

Adiante, estudarei as consequências que julgo essenciais deste sistema – da ética à estética, passando pela política e por propostas de grelhas de leitura da arte mais recente: reconfigurando a noção de representação, delineando, por fim, uma estratégia de resistência à interpretação (separando interpretação de interpretável).







1. Com Platão, a caminho do acontecimento

De Alain Badiou vem-nos a filosofia do futuro. Um futuro ligado ao passado: segundo nos diz, a sua filosofia é clássica por natureza, trabalhando uma metafísica do Ser e do fundamento. E um dos fundamentos desta obra, escrevi-o na síntese introdutória de há pouco, provém de Platão e respeita a separação entre verdade e opinião: opondo para tal o acontecimento à opinião, configurando um apelo ao exterior do mundo conhecido, destroçando-o onde ele se fixa numa disciplinaridade fechada. Disciplinaridade essa que pode ser a filosofia com suas regras, por exemplo. Consideraremos aqui que a filosofia não reproduz nem sistematiza nada desse além-ser, pois, como escreveu Walter Benjamin, o conhecimento não pode ter como objectivo a verdade. Diferentemente, o conhecimento, não aspirando à verdade, tem de se submeter à imprevisibilidade do encontro: com aquilo que não pode descrever, com aquilo precisamente que não se sabe como nem porque ocorre. Ora, se a filosofia tem de se submeter ao que não pode explicar -- encontro, acontecimento, verdade --, digamo-lo como consequência que essa submissão força um corte com a (nossa) percepção imediata. Inevitavelmente. Este corte é imposto pela irrupção do acontecimento, claro está, mas é igualmente uma decisão do sujeito que se compromete com aquilo que o ultrapassa e destrói as faculdades do entendimento. Como uma sombra sem luz.

Para simplificarmos, diremos que Badiou vai denominar como Verdade aquilo que Platão chama e teoriza como Ideia. Neste contexto, e numa entrevista datada de 1999, Badiou faz esta declaração absolutamente esclarecedora: « [permaneço] convencido de que as questões com as quais Platão estruturou aquilo que é conhecido por filosofia são as correctas, e que o mundo das verdades, tudo ponderado, tem mudado pouco desde essa invenção».1

Seguidamente, com a devida determinação conceptual, Badiou refuta o aparente antiplatonismo do século XX. Considera-o inclusivamente um falso suporte de acção que partiu de uma falsa definição e medida do platonismo.2 Ou seja, o final do século XIX e praticamente todo o século XX criaram uma ilusória imagem do autor de A República, enredado num problemático sistema de pensamento como que cómodo para ser atacado. A leviandade inconsequente da «nova filosofia» (Bernard-Henri Lévy, André Glucksmann, etc) chegou mesmo a considerar Platão um pensador «totalitário». É no seu livro sobre Deleuze que Badiou apresenta este tópico essencial:



Mas talvez o imperativo seja completamente diferente. Não é o platonismo que deve ser derrubado, é antes a evidência antiplatonista de todo o século. Platão deve ser restituído, conjuntamente com a desconstrução do «platonismo», figura comum e montagem de opinião, dispositivo que circula entre Heidegger e Deleuze, de Nietzsche a Bergson, mas também dos marxistas aos positivistas, servindo ainda aos novos filósofos contra-revolucionários (...) e aos moralistas neokantianos. O «platonismo» é a grande construção falaciosa da modernidade e da pós-modernidade. É o seu apoio negativo geral: não existe senão para legitimar o «novo» sob a sigla do antiplatonismo.3



Num estudo posterior, é na figura e obra de Fernando Pessoa que Badiou se vai apoiar para nos revelar a existência de uma genial superação destes impasses, caracterizando o antiplatonismo como o «lugar comum da nossa época». De Nietzsche a Bergson, como vimos, mas também nas filosofias linguísticas, de Wittgenstein a Carnap. O lugar cimeiro de Pessoa na arte do século XX estaria assim alicerçado além desta ilusória dicotomia -- no facto de não ser nem platonista nem antiplatonista:



A modernidade de Pessoa é a de contestar a pertinência da opisição platonismo/antiplatonismo: a terefa do pensamento-poema não é nem de obediência ao platonismo, nem a sua reversão.

E é isso que nós, filósofos, ainda não compreendemos completamente. Daí que não pensemos ainda à altura de Pessoa.4



Convém realçar que este desnivelamento entre poema e filosofia resulta da condição intrínseca dos dois domínios, porque o poema é verdade e pensamento (enquanto pensamento próprio, o poema nunca está dependente da estética, de qualquer corrente estética, para ser pensado – essa não dependência é a dimensão inestética da arte de que falaremos depois) e a filosofia é, pelo seu lado, a inquirição da compossibilidade, ou seja, é o estudo daquilo que é «comum» às várias instâncias de produção de verdade (arte, encontro amoroso, ciência e política) – a ela cabe-lhe pensar o pensamento destas mesmas instâncias. Pensar o pensamento dos procedimentos de verdade não significa pensar ou definir a verdade, é antes indagar a sua partilha entre os quatro campos assinalados. O que estes evidenciam compossível.

Enquanto pensamento e verdade o poema (a arte) está para além do seu próprio autor, do mercado e das opiniões em voga no momento da escrita, do comércio, portanto, e da técnica. O poema é expressão de uma verdade indissociável da forma que ela inventa para se manifestar. Expressa e, ao mesmo tempo, inventa o modo dessa expressão. Por isso é que o poema não pertence ao presente, nem àquilo que o motivou. Só pode ser, concluindo, injustificável e sem razão. «Não há presente», cita Badiou de Mallarmé, mas enquanto este estava preso a uma dimensão transcendental da autoria, Pessoa soube pulverizá-la superando-a sem ceder ao seu contrário, ao anonimato ou à autoridade colectiva:



O anonimato mallarmiano permanece prisioneiro da transcendência do autor. Os heterónimos (Caeiro, Campos, Reis, Pessoa em pessoa, Soares) opõem-se ao anónimo, na medida em que não aspiram nem ao Uno, nem ao Todo, mas instauram originariamente a contingência do múltiplo. Daí que componham, melhor do que o Livro [de Mallarmé], um universo. Porque o universo real é simultaneamente múltiplo, contingente e intotalizável.

(...) De modo que lemos este poeta e não conseguimos desligar-nos dele, enquanto não descobrimos um imperativo, ao qual não sabemos ainda como submeter-nos: tomar a vida que estabelece, entre Platão e o anti-Platão, no intervalo que o poeta abriu para nós, uma verdadeira filosofia do múltiplo, do vazio, do infinito. Uma filosofia que faça afirmativamente justiça a este mundo, que os deuses abandonaram para sempre.5



E porque é importante conquistar o infinito entre o platonismo e o antiplatonismo ? Por que motivo é decisiva esta superação para salvaguardar o vazio entre Platão e anti-Platão ? Porque é fundamental (a razão de ser – e finalidade – da arte) a ligação entre sensível e Ideia, uma Ideia que visita o sensível sem nele se integrar. Sem ceder à transcendentalização do Uno, por um lado, e, por outro, sem sair do Uno para o terreno de um múltiplo que não é mais do que o empirismo. Assim emerge um verdadeiro manifesto pela filosofia. Lá iremos.

Recentemente, num texto («Dialectiques de la fable»6) sobre Matrix, o filme dos irmãos Larry e Andy Wachowski, Badiou faz uma outra remissão a Platão (analisando sob o seu signo a dinâmica estruturante de Matrix). Que fazem os Wachowski ? Dizem-nos que a nossa alienação provém de nós mesmos, e propõem a libertação da simulação negando a indecisão e a dissolução real-virtual; por seu lado, também Badiou reclama uma prova do real perante a aparência: mostrar a aparência visível dentro da aparência, ou seja, confirmar que as sombras não são mais do que sombras.7 Através da aparência (vendo-a como não mais do que uma decepção da visão) chegar-se-ia à realidade. Por isso, o conceito central de Badiou é a verdade contra a opinião e o juízo, em ligação indissociável ao acontecimento (que é precisamente a Ideia a que o conhecimento não pode aspirar).

Verdade, acontecimento, ser, conhecimento: estes termos, clássicos por natureza, têm uma definição/redefinição imperiosa nas mãos do autor, fazem parte de um edifício denso e totalmente refundado. Comecemos pelo acontecimento. Este desprende-se do ser, e ambos se definem por oposição e por desacordo mútuo numa distância fulcral: contudo, o acontecimento, ao mesmo tempo, pertence e não pertence ao ser. Comecemos esta abordagem pela não-pertença – como sítio de onde desponta a verdade, ele é o indiscernível que nos escapa. Vejamos como.



2. Fundação: chegar ao acontecimento é alcançar o além-ser

Há, como se depreende logo desde o título do monumental L’Être et L’Événement, de 1988,8 a obra central do autor até ao momento (que a considera um caminho plenamente aberto, preparando-lhe neste momento um «segundo volume»), uma separação entre ser e acontecimento, ligando-se o ser à situação (isto é, a qualquer situação explicável, ao mundo e à ontologia), e o acontecimento à verdade que, imprevisivelmente, transtorna e rompe o «estar» da situação; sem causa e sem razão, mas com um profundíssimo efeito.

O acontecimento tem origem na zona branca (o vazio do site événemential) do ser. Nesta zona o ser, e o que quer que lhe suceda, não pode ser estudado ou conhecido. Aliás, essa zona nem pertence ao ser. Pois o ser, o nosso ser da ontologia, é conhecido somente na situação: diz Badiou que a ontologia é a situação e o mundo. Aqui «mundo» é o que «é». Um caso, um caso particular. Aquilo que se repete, se quisermos, o presente encadeado numa estrutura de passado-presente-futuro com seus sintomas caracterizadores, e Badiou (ou melhor, o «seu» acontecimento) o seu inimigo, o inimigo de qualquer tempo em particular, de qualquer situação estabilizada – repetida – que se possa chamar de presente. Por isso, na sua análise (que também é, por vezes, discussão) destes tópicos, considera Slavoj Žižek que o acontecimento pertence ao não-ser, enquanto o trajecto do múltiplo puro à situação (e ao seu excesso/vazio) estrutura o ser (ver o especulativo mas detalhadíssimo ensaio, «The politics of truth, or, Alain Badiou as a reader of St Paul»9). De outro modo, teremos de considerar o ser aquém do acontecimento. O ser é ultrapassado pela escala extrema do acontecimento: este tem uma envergadura que não só é um «outro» em relação ao ser (lhe é estranho), como ainda terminantemente o ultrapassa.



2.1. «Matemática = Ontologia»

Façamos aqui uma pausa antes de qualquer explicitação quer deste mecanismo teórico na sua globalidade, quer da articulação entre as suas partes (constituindo um encadeamento cirúrgico). Comecemos pela seguinte questão: considerando a impossibilidade da explicação de um acontecimento, para que serve então o pensamento?, qual a função do conhecimento e de uma leitura racional (se ela for possível) da progressão vazio-acontecimento ? Em primeiro lugar, o conhecimento filosófico acede a um lugar de onde pode avistar o ser: o acontecimento, por seu lado, como inaugura um processo de verdade, a ele se pode/deve juntar a filosofia como o pensamento da compossibilidade das verdades. A verdade é um pensamento. Como a filosofia não define nem determina estas verdades, ela pensa o pensamento que as verdades são: a filosofia é um garante da compossibilidade do pensamento. Ora, se a filosofia está do lado da compossibilidade, salvaguardando o território do acontecimento-verdade, que não é da ordem do ser, quem ou o que vai ter por finalidade o estudo do ser ? Como se define, nesta circunstância, a ontologia ? Define-se a partir de uma nova equação com a matemática. Dizer que a ontologia é a matemática («matemáticas = ontologia»10) tem como consequência imediata, e antes do mais, uma inédita separação entre a ontologia e a filosofia, e para além disso liberta a própria matemática da eterna busca do seu fundamento: ela torna-se, como é, apodíctica, exactamente como o ser; e este, por sua vez, é dito na matemática. Ora, como é que a ciência do ser-enquanto-ser é a matemática ? É-o a partir de um percurso que é realizado paralelamente entre ser e matemática nos termos que a seguir exporei.

A matemática não apresenta nada, mas nem por isso ela é o vazio absoluto. Deste modo, «não ter nada a apresentar, exceptuando a apresentação de si mesmo, isto é, do Múltiplo, e nunca se confinar à forma do objecto, é certamente uma condição de qualquer discurso sobre o ser enquanto ser»11. Mas este tópico, como se verá, não vai ter apenas implicações no domínio da filosofia (que «perde» a ontologia, como verificámos, num enunciado em que Badiou se opõe, em primeiro lugar, a Heidegger), mas alargadamente resolverá vários problemas científicos ou epistemológicos, digamos assim, como o da eterna pesquisa em torno dos fundamentos da matemática, principalmente a questão que respeita à natureza dos objectos matemáticos.

O que são objectos matemáticos ? «Objectos ideais (platonismo) ? Objectos extraídos por abstracção da substância sensível (Aristóteles) ? Ideias inatas (Descartes) ? Objectos construídos através da intuição pura (Kant) ? Através da intuição operatória finita (Brouwer) ? Convenções de escrita (formalismo) ? Construções transitivas à lógica pura, tautologias (logicismo) ? Se aquilo que eu enuncio é argumentável, a verdade é que não há objectos matemáticos. As matemáticas não apresentam, em termos restritos, nada (...).»12 Conclusão decisiva, portanto: a Matemática «é a nu que expõe os conflitos de existência e dá-nos a entender que qualquer compreensão do ser supõe, no caso da existência, uma decisão que, sem garantia nem arbitragem, orienta decisivamente o pensamento. (...) é quando decidimos o que existe que ligamos o nosso pensamento ao ser.»13

Retenhamos uma consideração, útil certamente para certas tarefas de páginas subsequentes. Embora se sustente o ser separado do acontecimento, não deixa de ser deveras interessante que aquilo que os pode posteriormente ligar passa pela relação de ambos com o mecanismo firme da decisão (pois dela depende parte da nossa existência). Desta forma diremos que a matemática expõe o mecanismo da decisão, e o acontecimento dele necessita para ser aquilo que é e como é: indecidível, incontrolado, injustificável e injustificado, o acontecimento é, no fundo, uma adesão (aquilo que o confirma como tal, pois todos somos fiéis a cadeias de acontecimentos tornados verdades); aderimos porque decidimos assim, não pelo nosso saber, mas pela decisão pura de querer estar ao lado de algo que sabemos incalculavelmente importante.

Tentarei, de seguida, não propriamente simplificar mas tornar estes pressupostos exemplares. Qualquer «espectador» pode testemunhar e entender, na sua imediaticidade, esta síntese: há em todas as situações (um momento da história, um período de governação, um governo, uma cidade, um movimento artístico, etc) um potencial de inovação. O acontecimento é o momento de efectivação de um corte necessariamente efémero – provisoriamente, denominemo-lo inovação -- na situação; surge quando determinadas formas dominantes do conhecimento que assegura o statu quo deixam de ter qualquer valia. Do vazio gerado por essa perda (ganho, no fundo) surgem o acontecimento e a verdade que reclama a fidelidade como resposta. Por isso pode dizer-se que o acontecimento também pertence à situação.

Mas, voltemos entretanto atrás: por um lado, o acontecimento é indecidível e incontrolado, por outro lado o acesso ao conhecimento, ao qual pertence o ser, é possível e é uma tarefa da matemática. Enquanto esta proporciona o acesso ao ser, expondo-o, o acontecimento nega qualquer estabilização – é o momento incontrolado que escapa à positividade. A matemática está para o ser como o acontecimento está para um trans-ser (Court Traité d’Ontologie Transitoire). Mas a matemática também pode aceder a esse trans exterior: por exemplo, a sequência situação  acontecimento  verdade (de onde parte a refutação do Estado e a consideração de que todo o pensamento é não-estatal) é desenvolvida em L’Être et l’Événement através de complexos exercícios alicerçados na teoria dos conjuntos de Georg Cantor, que mais tarde comentarei de maneira inevitavelmente sintética. A este propósito, diz-nos o autor: «em L’Être et l’Événement (...) examinei a eficiência ontológica dos axiomas da teoria dos conjuntos, através das categorias sucessivas de diferença, vazio, excesso, infinito, natureza, decisão, verdade e sujeito».14 Seria de facto importante verificar este procedimento, que eu denominaria dupla faculdade da matemática de aceder ao ser tanto quanto ao trans-ser (que é a irrupção sem mediação do acontecimento).

Nos termos em que a matemática é a ontologia consideramo-la explicável pela filosofia, disciplina que é por assim dizer chamada para pensar o pensamento que a matemática é. Posteriormente, vejo uma duplicidade funcional das matemáticas: expõem e analisam o ser enquanto ontologia, e, por outro lado, produzem o trans-ser das verdades. Sabemos que o trans-ser da verdade é produzido em quatro domínios/procedimentos – ciência, arte, política e amor. No campo da ciência, a matemática é o paradigma central: não depende da observação, não é verificável experimentalmente, e inventa o medium através do qual se apresenta como verdade. A matemática é um pensamento que, quando se pensa a si e em si mesma, o faz obviamente segundo as suas orientações e inclinações. A filosofia intervém aí: perguntando o que é uma orientação no pensamento, o que é um meio, uma inclinação, uma predisposição, uma orientação, etc. E é na medida em que é pensamento pensável (pela filosofia) que a matemática está no campo do ser, e não no do acontecimento. Ser pensável é, desta maneira, poder ser objecto da predisposição da filosofia para a elaboração de uma «teoria geral»: a teoria da compossibilidade.

Se pensarmos novamente na equação «matemática = ontologia», veremos que a filosofia encontra-se com a matemática por meio da teoria dos conjuntos de Georg Cantor, Kurt Gödel e Paul Cohen, pois é nesta teoria que cresce uma forma privilegiada de acesso ao ser: o conjunto vazio (ver capítulo II). O «há» («il y a») do ser-múltiplo adquire aí sentido real. Diremos que a teoria dos conjuntos possui a faculdade de acesso ao ser-enquanto-ser, ao «é» que algo tem de ser antes de ser uma qualquer coisa particular: um objecto «é», antes de ser grande ou pequeno, lilás ou amarelo, etc. Mas, como lemos em L’Être et l’Évenement, isto não significa que o ser é um objecto matemático, significa apenas que a matemática tem acesso àquilo que do ser-enquanto-ser pode ser dito, que tem acesso ao seu dizível. Por isso é que Badiou afirma que a sua tese não é sobre o mundo, mas sobre o discurso.



2.2. Remediar o excesso da situação (e do estado)

Voltemos à sequência situação  acontecimento  verdade.

[ Ver Diagrama 1 e Diagrama 1-A ]

Proponho esta explicação. No início do que denominei esfera do ser, há uma pré-situação, digamos, preenchida por um múltiplo puro: é o dado sem simbolização que ainda não constitui uma unidade. A situação é-lhe imediatamente posterior: é um conjunto de «unidades» concebível ele próprio como uma unidade -- a «sociedade portuguesa», a «cidade de Lisboa», a «arte moderna», etc.

Ora, porque é o pensamento anti-estatal ? Porque uma situação existe sempre em excesso. Nesse excesso a situação promove uma «armadura» inaceitavelmente forte (repressiva e/ou corrupta, por um lado, inconsistente, por outro lado) para agrupar as suas unidades numa unidade maior. A situação, não o esqueçamos, é uma unidade com várias unidades.

Num dos tópicos essencias de Qu’est-ce que la Philosophie ?, Deleuze-Guattari definem a filosofia como criação de conceitos. Nos termos desta criatividade imperiosa (aproximável à «decisão» em Badiou ?), o sistema de Badiou, que, a seu modo, é vitalista como o do próprio Deleuze (mas, note-se que a fluidez do conceito deleuziano não interessa a Badiou), irá suscitar-lhes uma análise. Isto apesar da conflitualidade Deleuze versus Badiou ser uma hipótese de trabalho pertinente: para Žižek, nomeadamente, que sugere poder-se combater o idealismo multitudinário, subjectivista, anti-edipiano, nomadológico de Deleuze (quando acompanhado por Guattari) com a redução, em Badiou, da ontologia à matemática.15 No Capítulo 6 de Qu’est-ce que la Philosophie ?, aparece esta interpretação: os corpos e os objectos, ou outras «unidades» de uma situação, estão do lado das funções, enquanto o acontecimento pertence ao conceito (portanto, algo criado, inventado). Para que as unidades sejam uma unidade -- para termos a sociedade a funcionar com os seus sub-conjuntos: polícia, parlamento, hospitais... -- é necessário criar uma estrutura (consideremo-la uma meta-estrutura) que duplica, representa, sustém e configura a diversidade. É o estado da situação, um excesso permanente e inevitável. Este estado é (também) o Estado e as suas representações ordenando e reordenado, sobrepondo-se excedentariamente às presenças existentes, à sociedade, à comunidade e ao mundo. O Estado configura/estabelece a «unidade» através de uma acção sempre excessiva; primeira conclusão: o Estado é sinónimo de excesso. Posteriormente, deveremos considerar que é o estado-Estado aquele que configura um terreno performativo que denominaremos «comunicacional», ou tão-somente a comunicação. O passo seguinte é desde já crucial: a arte e o pensamento, nos seus termos, apenas operam com aquilo que a comunicação irá considerar inexistente. A arte e o pensamento são o impossível, simultaneamente, do Estado e da comunicação, porque a arte interrompe a comunicabilidade necessária para o estado da situação funcionar, digamos, na sua medida perfeita. Não diremos, no entanto, que a arte sabota a comunicação. A arte é, do princípio ao fim, a-intencional. Separa-se da comunicação sem a sabotar. Inventa um mundo sem comunicação. Ou melhor, separa a verdade da comunicação. Separa o conceito da função.

Quanto ao pensamento, este «não é outra coisa senão um desejo de acabar com o excesso exorbitante do estado. (...) O pensamento existe para que termine, mesmo que essa cessação não seja de facto obtida, o desancoramento quantitativo do ser. (...) O pensamento é propriamente aquilo que a des-medida (...) [do Estado] não pode satisfazer».16

Testando esta conclusão, e desenvolvendo a teoria dos conjuntos, deduzir-se-á de Badiou que o verdadeiro pensamento, numa das suas múltiplas configurações de resistência, poderá operar em torno do indiferenciado. Recordemo-nos aqui, embora com nuances a clarificar de seguida, do «ser qualquer» de Giorgio Agamben, em La Comunità che Viene: «A singularidade liberta-se assim do falso dilema que obriga o conhecimento a escolher entre o carácter inefável do indivíduo e a inteligibilidade do universal», lê-se logo no início do livro.17 «Qualqueridade» que o filósofo italiano vê manifestar-se, por exemplo, também no sentimento amoroso -- o amor «quer a coisa com todos os seus predicados» --, tal como o «il y a» da equação «ontologia = matemática» de Badiou, que também conjuga o amor como campo da verdade.

Seguidamente, ensaiemos uma convergência entre o «ser qualquer» de Agamben e o valor do indiferenciado e indiscernível em Badiou. A importância da indiferenciação e/ou indiscernibilidade nos pensamentos de emancipação de Agamben e Badiou, pode aqui ser vista convergentemente elaborando um útil eixo de diferenciação em face de três tentativas teóricas, estudadas por Badiou, de remediar, precaver (no fundo, legitimar?) o excesso do estado. Avancemos uma conclusão antes mesmo de uma análise mais detalhada deste tópico: para que a indiferenciação funcione como emancipação é decisivo que ela não se estatize. Peter Hallward dirá, com Badiou, que é necessário fazer o percurso de Rousseau a Marx. Expliquemos agora este problema, acompanhando a argumentação com a análise do Diagrama 2, intitulado «Destino ontológico e formas de remediar o excesso do estado ...».

A primeira tentativa de remediar/responder (parer à) ao excesso do estado diz-nos que a origem da desmesura reside no interior da língua. Donde, a língua tem de ser levada a um uso, digamos, «perfeito» (langue bien faite). Trata-se do pensamento construtivista que preconiza dominar a desrazão que, por vezes, se abre no tecido da língua (tissu de la langue, nos termos de Badiou). Esta primeira tentativa, apoiada num trabalho de restrição da língua (les contraintes de la langue), «exige que o estado distinga expressamente o que é uma parte legítima da situação ou o contrário, aquilo que, embora na situação vá formando “reagrupamentos”, nela deva permanecer informe e inominável».18 No fundo, o estado não considerará todas as unidades passíveis de contar. Movido pela sua inerente metaestrutura, pela sua sabida acção de duplicação (duplicação que é ordenação), o estado apenas vai contar com aquilo que toma como «representações razoáveis». Apenas conta o que pode ser destrinçado (separado) através da língua; aquilo que não cabe numa língua «bem feita» não existe – trata-se de seguir, no seio do estado, o princípio leibniziano dos indiscerníveis: não existem duas coisas das quais não seja possível assinalar [pela língua, o mecanismo nuclear da situação] as suas diferenças. A língua toma por idêntico aquilo que não consegue separar. De outro modo, como a sua tarefa é a distinção, no seio da língua em acção, não pode existir o indiscernível. Trata-se de uma forma ambígua de limitar a desmesura do estado, uma via que, concretamente, pretende reduzir essa excessiva extensão assegurando que é parte da situação somente aquilo que ela pode nomear. Considera-se que a língua está entre a presentificação e a representação, e é essa ligação que faz que o estado não ultrapasse excessivamente a situação e as suas partes componentes. Mas o construtivismo e o seu uso da língua relevam-se problemáticos. Porque o poder da língua é extremamente ambíguo: se, por um lado, limita o excesso do estado perante as partes da situação, por outro lado irá permitir-lhe melhor governar o ser reduzido a um «saber», ou seja, o estado fixará sempre o «um-múltiplo» da situação a um nome.

Badiou trata deste tema na parte VI de L’Être et l’Événement dedicada a Leibniz e ao construtivismo, processo que contesta claramente. Há no pensamento de Badiou uma evidente crítica do construtuvismo e da sua orientação que preconiza a inclusão do nominalismo. A figura principal deste programa é Leibniz, mas também dele fazem parte Wittgenstein, a filosofia analítica angloamericana e Foucault, a quem Badiou critica o desinteresse pelo problema da verdade. O que Badiou contesta no construtivismo, em síntese, é a sua correlação da verdade a uma conformidade com aquilo que é conhecido, uma correlação entre verdade e normas estabilizadas, ou seja, uma colocação da verdade nos limites do conhecimento; e isto é contrário à natureza da verdade, pois ela é antes um «encontro» com o indecidível e o indiscernível. O construtivismo, que se situa do lado da ontologia, é, deve tal reter-se, uma filosofia do statu quo. Politicamente apenas pode conduzir ao reformismo moderado ou aos parlamentarismos consensuais («programáticos», «construtivos»).

Poderíamos a partir daqui tentar um desvio que funcionasse como resistência crítica, transformadora de facto do excesso do estado ? Como ? Proponho e subentendo o seguinte: experimente-se a possibilidade de inversão deste mecanismo que liga a língua à negação do indistrinçável. Ou melhor, inverta-se o paradigma que faz da língua a decisora do que é ou não é indistrinçável (porque esta, como disse, toma sempre por idêntico aquilo que não pode distinguir). Ou seja, passemos a reivindicar singularidades genéricas, que se separam nas suas singularidades, mas não através da língua-nomeação. Tal como entendo este tema, não será antes por aqui que pode passar a conciliação entre a singularidade (que resulta na multiplicidade do ser, ou numa multiplicidade de singularidades) e a genericidade (o Uno da multiplicidade) da verdade ?

A segunda tentativa de atenuar ou remediar o excesso do estado parte do princípio contrário: desponta do indiferenciado que cabe primordialmente ao pensamento apreender. Ou seja, se antes se afirmou que o indiscernível não faz parte do campo do estado (porque a língua, que tem como missão distinguir, dele se ocupou em exclusivo, não permitindo outra forma de discernibilidade além da autorizada pela situação), aqui, pelo contrário, é o indiscernível que compõe o essencial do campo onde opera o estado, cabendo ao pensamento a tarefa de apreender o múltiplo-semelhante, fazendo com que a representação enumere sem discernir, «do lado dos partidos sem limite, dos conglomerados fortuitos». 19 Enfim, trata-se de considerar que aquilo que representa melhor uma situação não é o que nela habita distintivamente, mas antes o que nela se integra evasivamente. Rousseau é a figura convocada para esta segunda tentativa de remediar ou responder ao excesso do estado, e, apesar de ser para Badiou o grande fundador da política revolucionária, o teórico do contrato teria falhado na imperiosa desestatização desta genericidade.

A terceira tentativa pretende propor uma «lógica da transcendência» e aí reformular tanto a mera necessidade de captura ou apreensão do indiferenciado em geral quanto a discernibilidade pela língua. Trata-se de afirmar uma potência infinita contra, simultaneamente, a língua e o indiferenciado. Estamos no terreno da metafísica clássica e também na «escatologia comunista» (Badiou). Contudo, há nestas tentativas de remédio do excesso determinados impasses verificáveis na história, ou na história mais recente, para os quais procurarão respostas também as obras de Marx e Freud, transfigurando ou invertendo a própria ontologia (superando pois o limiar do ser que cabe no campo do conhecimento) numa busca do procedimento inapresentável da verdade. Ou seja, trata-se da abertura à irrupção do acontecimento, de uma libertação do medo provocado por uma desligação do ser. O ser rompe a esfera do conhecimento (ontologia) e abre-se ao indecidível supranumerário (o inconsciente, as massas, etc).

Retomemos a caracterização do excesso do estado. Este excesso, porquanto excesso, converte-se em vazio (Badiou e Deleuze-Guattari interpretando-o no livro citado), surgindo daí, do que denominamos sítio do acontecimento, algo que escapa ao conhecimento e à previsão. Reflectindo melhor, aquilo que irrompe acaba por ser uma imprevisibilidade previsível, porque o corte efectuado é parte do potencial da situação. Deste modo, se bem o entendo, o acontecimento não é nem casuístico nem arbitrário, porque está inscrito na situação e num dos seus «pontos» constituintes. Sendo uma inevitabilidade ou um componente previsível da situação, distingue-se pela sua auto-reflexividade – o acontecimento contém obviamente elementos da situação e de si mesmo, porquanto é uma «novidade» misturada com elementos «anteriores». Precisando melhor, o acontecimento está entre o vazio (de onde irrompe) e ele-próprio (auto-reflexivo).20 Isto significa que o acontecimento pertence à situação: opção de Badiou, que estuda também a hipótese contrária – «o acontecimento não pertence à situação».21

Detenhamo-nos na primeira hipótese: o acontecimento pertence à situação. Sabemos que ele é um múltiplo composto, por um lado, de elementos do chamado sítio do acontecimento (do vazio que pertence à situação, mas transfigurada) e, por outro lado, por ele próprio; a explicação é deste modo formulada: o acontecimento é um elemento da multiplicidade que ele próprio é e um elemento da multiplicidade que o instaura desde o início. Fórmula que descreve aquilo que Badiou denomina «ultra-um» do acontecimento: este conta por um duas vezes. O acontecimento é aquilo que lhe é próprio, intrínseco ou interior e o que é também na total imprevisibilidade que instaura desde o lugar de eclosão; ele é «ultra-um» porque é ele próprio que separa o vazio de si mesmo. Por outras palavras, temos a multiplicidade de factos inéditos que irrompem na situação – estes factos não são «nada» sem a «orientação» do acontecimento de que eles são testemunho. Para Badiou isso significa que aquilo que nos revela que o acontecimento não é o vazio puro é ele próprio: o acontecimento separa-se do vazio do seu sítio através do «um» que ele próprio é enquanto acontecimento. É ainda ele próprio mais a fidelidade que instaura, a fidelidade dos que, por conseguinte, decidem segui-lo. No acontecimento, há uma multiplicidade e um vazio (e, repita-se, é sempre do vazio que emerge o – desconhecido -- do acontecimento).

Foi desse mesmo vazio irredutível à explicação e ao conhecimento que, por exemplo, emergiram as revoluções (francesa, russa, chinesa, etc). Assim, continuando, se não fosse essa emersão ter origem num vazio puro sem explicação, anteveríamos que a ordem existente, prevenida da eclosão da transformação em curso, tê-la-ia impedido. Isso é claro. Mas esse vazio é apenas um sítio de onde «algo» emerge, ou seja, não é ele prório «o» ou «um» acontecimento. E nem o acontecimento pode ser definido só por ele próprio. Simplificando: uma revolução é uma ruptura numa dada sociedade e temporalidade. Ela revela a natureza dessa sociedade (o rosto da opressão e a derrota da opressão, se quisermos). Separada desse(s) contexto(s), ela é, em «si mesma», quando muito, uma «palavra» ou uma figura teórica. Ela só é algo, um acontecimento, quando sopesada em si e nesse corpo que altera. Por isso se diz que o acontecimento se coloca entre o vazio e ele-próprio. E no vazio ou na orla fundadora desse vazio está o seu sítio (o site événementiel).22

Se retomarmos agora a distinção que o autor opera entre «inclusão» e «pertença», partindo da teoria dos conjuntos (onde há um enunciado que afirma: um termo pode pertencer a um conjunto e nele não estar incluído, porque nem tudo o que dele faz parte está incluído nesse conjunto), diremos que o acontecimento pertence à situação, mas nela não está incluído. Um acontecimento é uma inaugurada sequência imprevisível, logo infinita. Portanto, não pode estar incluído na situação; proponho a seguinte leitura: o acontecimento «Schönberg» despoletou a fidelidade, digamos, dos sujeitos Anton Webern e Alban Berg. Como explicarei, só uma escolha-decisão de Webern e Berg, num determinado momento, era fiel ao acontecimento «Schönberg»; essa escolha era, portanto, finita. Mas, o que se poderia fazer com essa escolha era, ou é, ilimitado. Por isso, creio, o acontecimento «Schönberg» pertence à situação «música na segunda década do século XX», mas nem todos os seus elementos estão incluídos nessa situação. Há, no acontecimento, pertença sem inclusão. Mas uma pertença indecidível. Concluindo, se se pode pertencer sem estar incluído, tal significa que a «inclusão» excede a «pertença».



2.3. Acontecimentos exemplares: a irrupção da verdade

A Revolução Francesa é a revelação da verdade do Antigo Regime. É a consequência directa da transformação do poder do Antigo Regime, ou da forma como ele era exercido, num excesso vazio. Destruindo-o, ao mesmo tempo a revolução revela a verdadeira face do excesso desse exercício. Revelando ainda a face oculta dos excluídos. Concretamente, a corrupção e a repressão agenciadas pela aristocracia tornaram-se ineficazes (absolutamente inconsistentes) para suster a verdade – sempre ilegal e revolucionária. A revolução começa por ser, neste sentido, uma incontida rejeição de uma forma de vida imposta; rejeição essa que emerge do vazio dessa imposição. Usando um tópico anterior, diremos que a revolução pertence mas não está incluída nessa imposição. Transcende-a, porque a «inclusão» excede a «pertença».

Quanto ao sujeito da verdade – S. Paulo, Saint-Just, Robespierre, Lenine – ele mantém-se fiel às consequências do acontecimento. Ligando a verdade ao acontecimento na situação, Badiou opõe-se à indeterminação desconstrutivista, considerando-a sofística. Diremos que partilhará temas com Derrida (a consideração de que só o múltiplo é pós-teológico, nomeadamente), mas nunca a localização da verdade (diferida em Derrida, ou não admitida por este como uma «irrupção»).

Da verdade derivará a oposição à opinião deste modo desdobrada: verdade versus opinião, política como pensamento versus filosofia política (pois Badiou não aceita que se retire o pensamento à política para o confiar à filosofia), ou, se quisermos, Lenine e «paixão do real» versus Hannah Arendt e primado do juízo, que não é mais do que a paralisia na circularidade viciosa da opinião (ou da «comunicação»), ou paralisia da opinião-comentário como mero número. Sobre isso, sempre foi Badiou definitivo:



A política não será pensável senão quando liberta da tirania do número, seja ele o número de eleitores ou o de manifestantes e grevistas.

(...)

O regime corrente daquilo que se apresenta como reflexão política é tipicamente o comentário eleitoral. Ora, nem o comentário nem as eleições podem ser as vias de acesso à essência da política.

O comentário é o murmúrio da impotência, o próprio da democracia inactiva, ou seja, do jornalismo.23





























[ Ver Diagrama 3 e Diagrama 4 ]



3. Verdade (1ª parte): escolha singular e infinito (ou o Mal enquanto ataque à infinitude inominável da verdade)

Vimos que Badiou considera a fidelidade, concretamente ao acontecimento intempestivo e acima de tudo inelutavelmente incompreendido, um dos critérios da verdade: a verdade decide-se sempre pela fidelidade. Este elo indissociável entre fidelidade e verdade convoca obrigatoriamente, como se percebe facilmente, a presença de um sujeito. A fidelidade à verdade só pode ser obra de um sujeito. Fidelidade ao acontecimento é a fidelidade à emergência de uma verdade; diz-se, por isso mesmo, que a fidelidade é um quase-estado pós-acontecimento24 – ela está entre o acontecimento e o sujeito; ou seja, emana e é exibida pelo sujeito no acontecimento.

Através da inscrição da verdade no acontecimento, que a define sem margens, Badiou transporta-a para um plano de universalidade sem nome, e sem, numa primeira instância, sentido, o que sinaliza uma decisiva ultrapassagem do juízo, da interpretação, da opinião e da explicação. A universalidade da verdade advém de uma sua caracterização como genericidade. A verdade é a inevitável ruptura no centro da situação no preciso momento em que a sua inconsistência se torna vazio. Aliás, situação e statu quo (ou uma eternidade de impossível preservação) são uma e a mesma coisa. Como tal, e porque emergindo de um acontecimento, do qual depende e ela mesma efectiva, a verdade não é apreensível, localizável ou justificável através de qualquer instrumento reflexivo ou crítico.

Considerando que estas caracterizações da verdade aparecem aqui, num primeiro andamento como que negativamente – inapreensibilidade, injustificabilidade, recusa de localização, proveniência e explicação, entre outras hipóteses [ Ver Diagrama 5 ] – para alcançar a sua positividade teremos de chegar a esta simultaneidade: a positividade da verdade é equivalente à sua irrupção como negação; uma negação que, contudo, afirma. A verdade destrói uma ordem para construir outro mundo através de uma simples proclamação, a qual decorre de uma inadiável decisão no «vazio do acontecimento». A verdade liga-se à prescrição, à decisão e à proclamação sem condições e interesses particulares, ou seja, da fidelidade à verdade não resulta nenhum benefício ou proveito; no pólo oposto, poderemos enunciar que o conhecimento (que reina e explica a situação) se liga à comunicação, à transmissão e à repetição. Assim se explicita uma polémica equivalência: conhecimento = repetição.

Ficámos a conhecer aquilo a que a verdade impede o acesso ou rejeita. Será apenas uma definição pela negativa ? Seja como for, não nos satisfará. Por isso passemos a uma primeira hipótese, contudo rápida, de definição positiva da verdade: ela é uma abertura imprevista, uma ferida e ruptura no corpo do real: a verdade é uma aparição que reescreve a lógica do mundo (ou as «lógicas do mundo», citando um próximo título de Badiou).

Toda a filosofia moderna, sobretudo desde Heidegger, reescreve a noção de verdade, retirando-a das esferas úteis como as do juízo, da mimese (da imitação e relacionalidade) ou da adequação. Badiou, por seu lado, radicaliza esta tarefa, afastando-a igualmente do juízo e prosseguindo com uma recusa da proposição, reinscrevendo a verdade na forma de um processo intempestivamente aberto no real. Dado importantíssimo: trata-se de um processo do real – um facto ou uma decisão-proclamação (S. Paulo proclama a ressurreição de Cristo e funda desde aí uma religião, um novo partido insuspeitado até então) – e desse modo a verdade se submete ao pensamento; isto significa que «para que um processo de verdade comece algo tem de acontecer».25 Este «acontecer» é um suplemento casual incalculável, por isso se coloca no exterior daquilo que se apreende ou conhece com as ferramentas que encadeiam aquilo que é, ou seja, a repetição que estabiliza qualquer configuração. O acontecimento interrompe essa cadeia de repetições que corporaliza o excesso do estado. Com as ferramentas disponíveis ao estado e à situação, e em geral com o conhecimento estabelecido, não é possível alcançar nem discriminar sequer aquilo que inaugura uma sequência de acontecimentos. Nesta incerteza restam-nos três atitudes: em primeiro lugar, apostar; depois, proclamar; por fim, fidelizar(mo-nos). Uma aposta, sempre imotivada e desconhecedora das suas consequências, uma decisão e uma proclamação, actos desencadeados por um sujeito. Deste modo aparentemente primitivo («cru», sem dúvida): «isto aconteceu, algo aconteceu e eu não posso calcular nem demonstrar o quê, mas a isso serei fiel».26

[ Ver Diagrama 5 ]

Nada regula esta opção e este impulso de fidelidade, porquanto ele é uma escolha pura e sem conceito: momento indefensável, e uma constante indiscernibilidade entre pelo menos dois termos (ou dois tempos, se quisermos). Ou indiscernibilidade pura e simples, como veremos. Esta eleição de um acontecimento, ou a nomeação de um «acontecimento», não é suportada por nenhuma circunstância objectiva; por isso, e também porque a formação-existência da linguagem não pode aqui activar nenhum apoio, dizemos que o sujeito da verdade é um aspirante do indiscernível e do inominável. Mais, este sujeito está sempre desaparecido entre (dois) indiscerníveis e aí, nesse lugar irreconhecível, realiza as suas escolhas. Esta «escolha pura» testemunha a indiscernibilidade do acontecimento no seu momento: na sequência, o «antes» e o «depois» do acontecimento não se distinguem. São tempos e termos idiscerníveis que despoletam uma aspiração sem forma, portanto, um desejo que é também predisposição.

Badiou costuma referir-se, no contexto dos acontecimentos artísticos (e aqui teremos de dizer que, quanto à produção de verdade, arte e acontecimento são sinónimos), por exemplo, a Ésquilo e à invenção do teatro trágico. Neste caso, também deparamos com algo que não poderia ser nomeado no sítio e instante «primeiro»; quer dizer, apenas pudemos nomear ou sistematizar a «invenção do tetro trágico» quando concluímos que, num determinado momento e com Sófocles, se edificava um universo começado por Ésquilo. Assim, no começo «Ésquilo» (ou no acontecimento «Ésquilo»), não poderíamos certificar-nos que estava a despontar o acontecimento «teatro trágico». Antes de Ésquilo o teatro trágico era totalmente indiscernível. Sófocles é, posteriormente, o mais importante dos sujeitos fiéis ao acontecimento «Ésquilo». No instante da escolha evenemental («estrangeirismo» que parte de événement, considerando que a tradução por «eventual» instauraria uma casualidade não pertinente), concretamente o instante que impõe a tomada de decisão evenemental – seja a do aprofundamento do teatro trágico por Sófocles, ou a da eleição de novas regras científicas por Galileu e seguidores, noutro âmbito, etc – nesse instante uma só escolha é da ordem do acontecimento-verdade. Por isso se define a escolha como finita. Posteriormente, aquilo que podemos fazer com essa escolha ou adesão (com a estrutura trágica ou a física moderna de Galileu, segundo os exemplos dados) é infinito: trata-se da finitude na escolha e da infinitude da escolha-proclamação. A infinitude das possibilidades em prescrição, ou seja, a propagação infinita de autores e obras fiéis ao acontecimento tragédia e física moderna, a infinitude de «sófocles» ou «galileus» multiplicando-se (injustificadamente, como o acontecimento originário) é uma possibilidade real que dá sustentação ao que Badiou chama subconjunto genérico infinito na situação. «Sófocles» é então um subconjunto na situação, um subconjunto genérico e sem predicado unificador.

O passo posterior já o divisámos: cada elemento deste subconjunto sinaliza algo, representando-o através da sua proclamação (repito, decorrente de uma escolha chamada evenemental); por outro lado, acompanhemos este tópico atentamente, a finalização daquilo que representa este edifício prescritivo, a totalização do seu uso, significado e implicação, apenas pode ser antecipada ficcionalmente e nunca realmente. Se forçarmos realmente este fechamento, conduziremos essa totalização (ou a decisão inicial que a tudo agora se quer aplicar) ao totalitarismo. A dimensão de totalização do acontecimento não é totalitária, mas, como o acontecimento não se enfeuda na particularidade (nem pessoal nem temporal), necessita de uma totalização ficcionada. Que denominarei «forçamento» ou «forçar», forçage em Badiou e forcing (termo usado em traduções para inglês).

Vejamos. Em qualquer situação, para a eclosão do acontecimento-verdade há, consequentemente, uma aposta inicial indiscernível, sabemo-lo. Esta aposta apenas trabalha a plenitude (evenemental) das suas possibilidades quando ficciona a conclusão daquilo que abriu. Por exemplo, Galileu dirá que toda a natureza pode ser traduzida e transmitir-se por meio da linguagem matemática (e di-lo sem o demonstrar – consideramos que ele ficcionou, obviamente, esse alargamento, pois não verteu as fórmulas matemáticas em toda a realidade), do mesmo modo o amante dirá ao seu par: «eu sempre te amarei !» (enunciado inverificável no instante da proclamação).

Resumindo, a escolha fiel é finita, mas o seu potencial é infinito e antecipável como ficção dessa infinitude; isto é virtual/ficcional e, ao mesmo tempo, instintivo – mas basta pensar na proclamação do amante para perceber que é imperioso. Não pode deixar de ser forçado (em ficção, repita-se), sentido, evidenciado, dito como luz extrema. Tal não implica o consequente fechamento nem a consecução da proclamação. Impor esse fechamento conclusivo é a definição de totalitarismo (o «sempre te amarei» do amante não é uma lei que vigore «fora» do amor, não é uma lei social, nem é a lei particular, ou qualquer outra, desse amor): mas mesmo nos totalitarismos, e em todas as situações totalitárias (da política à estética), há pontos inomináveis que resistem à realização plena do fechamento à nomeação total. A cada ponto de resistência inominável chama Badiou o «próprio do próprio».

A este, ao «próprio do próprio», já não acede o conhecimento, mas antes o pensamento. Ao «próprio do próprio» (inominável) também se chama o real da verdade. Argumento e conceito subsequente: a ética é aquilo que impede o acesso ilimitado ou o desmantelamento deste ponto. Isto é, a ética é a contenção do desejo de omnipotência da verdade. E a própria verdade se desconhece então a si mesma na sua globalidade, não porque assim tem de ser preconcebidamente e apenas porque a ética o estipula, mas antes porque nomear tudo é nomear a qualquer preço, ultrapassando o sentido e o propósito do nome. Conclusão: o nome a qualquer preço não é o nome de nada.

Voltando ao início desta reflexão em torno da definição pela negativa da verdade [ Ver Diagrama 5, de novo ], realizaremos porque é que «negar» é primordial: porque não se pode dar um nome – uma positividade, se se quiser – a tudo; de uma forma mais radical, não se pode forçar o «próprio do próprio» a obedecer ao nome. A ética diz que é preciso travar esta dinâmica perigosa, que é um desejo vertiginoso e «interior» da própria verdade, é preciso travar a tentação da nomeação absoluta. Aportamos a outro tópico: Badiou conclui que o Mal é imanente à verdade, o Mal não existe no exterior da verdade. O Mal é a verdade ilimitada desrespeitando o inominável, forçando uma nomeação onde ela não é de modo algum possível. Eis-nos numa finalização praticamente circular: a verdade é a fonte de onde emerge a sua própria destruição. Mas regressemos ao início da eclosão da verdade na situação.



4. Verdade (2ª parte): indiscernibilidade, inominabilidade, indecidibilidade, genericidade

A verdade de uma situação, como vimos, é revelada no acontecimento, na indiscernibilidade do (seu) acontecimento, e por via dessa eclosão desde o vazio sem nome a verdade da situação não reside nos seus elementos mais claros nem no real imediatamente definido: o novo é indiscernível. Noutro registo, mas na mesma recusa do claramente próximo, dir-se-á que a ligação da verdade ao acontecimento supõe que alguém a pode alcançar sem a entender, e que tal só é possível num processo de ruptura com o imediato, ou imediatamente percepcionado e explicado. Dirá Badiou, com Lacan, que é importante chegar ou alcançar uma verdade, mais do que compreendê-la. Existe uma verdade, continuando com Lacan, quando o não-integrado e o não-ser (indefensável, injustificado e indefinido) emergem imparavelmente. Esta incontida explosão do não-integrado é o outro nome do acontecimento. É o «encontro» de que fala ainda Lacan; é o que proporciona o acesso ao real: daí o statement, «todo o acesso ao real é da ordem do encontro».

A verdade depende de um acontecimento (isso que ocorre e não sei o que é), e sustensa-se como uma construção. É uma construção em cada instante porque não é algo em regime de permanência; não é fácil de a localizar e não está onde se pensa; em primeiro lugar, não existe: emerge. Quer dizer, não se está em «estado de verdade», porque ela habita a efemeridade do acontecimento (verdade = encontro = emergência do não-integrado sem particularidade temporal). A verdade é uma construção desconhecida; logo, é um trabalho de subtracção: é uma construção que se subtrai aos interesses que estruturam e constituem o real imediato. Como não é percepcionada imediatamente, a verdade é subtractiva à objectividade, a verdade subtrai-se ao possível: é o que adiante chamarei, a propósito da leitura crítica do objecto de arte, de interpretável sem interpretação – o próprio objecto enquanto alteridade permanente ou alteridade de si mesmo.

Retomemos a fidelidade ao acontecimento. Como a verdade não é garantida apriori, e apenas acontece por vezes, a sua permanência (e possibilidade) depende da proclamação militante de um sujeito fiel à mutação incerta, sem consequências inteligíveis, da inconsistência da situação. Como veremos, este «encontro» surge em quatro planos que representam os quatro palcos do condicionamento da filosofia: política, amor, ciência e arte, a que vão corresponder os seguintes gestos-ocorrências: revolução, paixão, invenção e criação.

A libertação do não-integrado no acontecimento torna visível o não-representado, revela o invisível da situação. E é sempre nesta zona de invisualidade que se encontra a verdade. Evoquemos os sujeitos exemplares de Badiou: S. Paulo na fundação do cristianismo; Saint-Just, Robespierre e os jacobinos na Revolução Francesa; Lenine e os bolcheviques na Revolução de Outubro; as Madres de la Plaza de Mayo na ditadura militar argentina; actualmente, a Intifada palestiniana; o EZLN, o movimento Zapatista de Chiapas do subcomandante Marcos, ou o MST/Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil.

Aqui alguns questionarão: não representarão estes movimentos -- inerentemente sociais, por comparação com os partidos enquanto aparelhos políticos do Estado --, por serem singularmente sociais, localizados ou insularizados, não representarão, como questionava, interesses particulares, contraditórios por esta razão com o fulcro teórico do autor ? Mostrarei porque tal não é um pertinente contra-argumento. Em primeiro lugar, a mobilização destes sujeitos é genérica e subjectiva, quer dizer, não tem interesses sociais tão localizados que sinalizem um confinamento, não remete para privilégios económicos ou étnicos parcelizados, não depende de uma reflexividade somente calculada e premeditada. Estas mobilizações são antes singularidades sem especificidade. Justificá-lo-ei de imediato. Analisarei, nos capítulo II e III aspectos ligados a estas questões (o triângulo movimentos-partidos-Estado, o multiculturalismo e a sua representação, etc), embora de modo distinto da síntese que de seguida sugiro.

Palestinianos descomunalmente inferiores militarmente perante um ocupante feroz e irracional, ou zapatistas mexicanos e «sem terra» brasileiros, todos se inscrevem no que Badiou chama, noutro lugar e contexto, de resistentes por lógica. São aquilo que são, como são, sem tempo de reflexividade e premeditação, são-no flagrantemente sem alternativa. Palestinianos, zapatistas e «sem terra» geram movimentações antes de tudo sem motivação (numa resistência lógica), são, em conclusão, movimentos que, não negando aquilo que representam, situam-se numa anterioridade ou num aquém da representação como estratégia. São a invisualidade que, na senda do acontecimento, não pode deixar de ser o mais visível do visível: este é o desemparo incalculado. Tal como os matemáticos-filósofos Arbert Lautman e Jean Cavaillés, figuras ímpares da resistência francesa à ocupação nazi, fuzilados por esse inimigo e homenageados por Badiou no «Prólogo» do seu Abrégé de Métapolitique.

Foi Georges Canguilhem quem chamou a Jean Cavaillés um resistente por lógica à ocupação da França. Considera Badiou que, por lógica deve aqui entender-se a conexão entre o rigor de um pensamento (a grande qualidade das obras de Cavaillés e também de Lautman assim o atestam) e a prescrição política do momento. É, uma vez mais, o tema da refutação da opinião que emerge:



Digamos que, procedendo por lógica, a resistência não é uma opinião. Ela é bem mais depressa uma ruptura lógica com as opiniões circulantes e dominantes. Tal como Platão indica, na República, que o primeiro estado da ruptura com a opinião é a matemática, o que afinal esclarece a escolha de Cavaillés e de Lauptman».27



Será oportuno cotejar esta consideração com a menção da personagem que encarna o espírito oposto -- Mitterand:



O presidente Mitterand, pelo qual nós estamos a suportar o decreto de um luto nacional em sua honra (...) pertencia (...) à espécie propalada dos tácticos, para quem era natural ser pétainista quando «toda a gente» o era, depois tornar-se resistente por força das circunstâncias, e prosseguir assim o seu percurso tornando-se de cada vez muitas coisas, provendo que elas tivessem o favor do tempo ou permitissem intentos realizados.28



Sem desterritorializações exótico-insularizadas, zapatistas e «sem terra» do Brasil (ainda que esquecidos pelo «homem de esquerda» Lula, ou talvez por isso mesmo) cumprem esta prescrição: sem lugar ou pertença, a verdade a todos vai dirigir-se – é universal e genérica, busca a semelhança e não a enfatização da diferença (e muito menos a sua «ética»): por isso enfatizamos a valorização do «direito à igualdade» sobre o «direito à diferença».

Retomemos uma questão já apresentada: se apenas há verdades amorosas -- realizadas pelo par amoroso, isto é, por dois sujeitos iguais e sem particularidade, que não se fundem no «um» nem acarretam um «dois» como resultado da soma de «um+um» --, científicas, políticas e artísticas, e não há «verdades filosóficas», qual é então a tarefa da filosofia ? Chamo uma outra vez a atenção para este tema apenas para o relacionar com a definição seguinte, a de situação filosófica.

Como não produz verdades, à filosofia cabe-lhe analisar o que os quatro campos da verdade partilham: seja, os seus regimes de compossibilidade. Dizer que a verdade é a prova dela mesma significa que ela é veiculada pelo discurso de cada um dos seus campos, e aí o discurso filosófico nada certifica. Assim, a política é ela própria, e sempre, um pensamento. Daqui parte a contestação de Badiou àquilo que inventámos sob o nome de «filosofia política». Enfim, deparamos com uma certeira conclusão extrema: ou a política é um pensamento ou não merecerá o nome de «política». Mas um pensamento não existe para se pensar a si mesmo. Aí intervém a filosofia: pensando a compossibilidade, a filosofia é um pensamento que pensa o pensamento (já veiculado pelos quatro procedimentos genéricos da verdade).

Vejamos um exemplo, dentre vários possíveis, para compreendermos a tarefa da filosofia, e antes de lançarmos o conceito de situação filosófica. Pensemos na matemática. Há a matemática enquanto área do saber com o seu estatuto e definição genérica no corpo das ciências; e há a matemática enquanto prática, a produção de teoremas, fórmulas, etc. Que relação existe entre estes dois planos, entre a definição e o estatuto de um saber e a sua prática concreta ? É a tarefa por excelência da filosofia: pensar a verdade em função das verdades, averiguar a partilha de verdade entre as verdades. Pensar o pensamento interno às verdades.

A realidade imediata é o que conhecemos como o mundo do sentido, do descritível, do justificável e do particular, a nossa abjection contemporaine: trata-se das «diferenças e distinções dominantes, dos privilégios e preconceitos herdados, da proliferação dos apelos à identidade étnica coordenados somente por mecanismos de mercado e justificados por uma “ética” negativa cinicamente formulada na forma dos direitos humanos e das políticas humanitárias. (...) um mundo de interesses específicos, juízos relativos e medidos calculismos».29 A filosofia não produz verdade/verdades mas pertence aos quatro procedimentos genéricos da verdade. Logo, subtrai-se do mundo particular. Concretamente, sempre condicionada pela verdade, vai a filosofia subtrair-se, igualmente de quatro maneiras, desse (nosso) mundo: através de uma operação indecidível (a verdade não é uma garantia permanente, é antes algo que acontece by chance); indiscernível (a verdade é ilimitada nas suas formas); genérica (o ser da verdade não pertence ao conhecimento); e inominável (o bem supremo não tem nomes nem é legislável).



5. Situação filosófica: distância e excepcionalidade

Num texto recente, retirado de um seminário apresentado em finais de 2003 em Buenos Aires,30 estabelece o autor uma importante relação entre a tarefa da filosofia e a situação filosófica, como que por natureza dependentes uma da outra ao ponto de podermos afirmar que a tarefa da filosofia é o reconhecimento e o estudo das situações filosóficas. Das que se analisarão, veremos que uma sinaliza a necessidade imperiosa de escolher/decidir sem conciliações no momento em que tal é mais necessário e não nos deixa outra saída (um momento estratégico, de certo modo); outra situação descreve a inevitabilidade da distância em relação ao poder de quem é definitivamente livre e, por isso, nada teme -- não ouve ordens, não reconhece a força; a terceira situação fala do amor como irrupção do acontecimento-verdade.

A filosofia, como disse, pensa a compossibilidade das verdades ou as ligações entre as quatro modalidades da verdade na situação, sendo todas e cada uma gestos inqualificáveis de ruptura irredutível (inclusive à própria ideia de «ruptura»). Esta é a tarefa da filosofia, prescrita por quatro condições que lhe são exteriores (mas interiores à verdade). Badiou, entretanto, complexifica esta definição com outro conceito: a situação filosófica. Partindo do autor, diremos ser possível estabelecer um paralelo ou, no mínimo, uma aproximação entre a situação filosófica e o acontecimento, porque em qualquer situação filosófica há uma ruptura indecidível, uma «não-comunicação» trágica (referência à morte de Arquimedes, no exemplo que se segue), uma inconciliação absoluta entre pelo menos dois termos da situação, em que um deles não é mais do que o guardião da situação (da perpetuação do mundo). Neste sentido, o guardião da situação não permite que alguém ou alguma coisa dele se distancie: não se limita a aplicar a força, mas tem de ver, digamos, o «que faz» quem dele se afasta, livre e sem medo, fixando/retratando nesse afastamento o verdadeiro poder do Poder para depois o afrontar: trata-se, por exemplo, do princípio das revoltas e dos movimentos de resistência (desde o maoismo à resistência timorense).

Mas, voltemos atrás. Não devemos confundir acontecimento com situação filosófica, pois esta releva de algo que pode ser examinado pelo filósofo (distanciação e recusa da comunicação como estratégias de verdade), enquanto o acontecimento é precisamente o que não pode ser examinado. Nenhuma análise compreensiva o sustenta: somos-lhe ou não fiéis, e é tudo. Passemos agora à definição de situação filosófica: dizemos que «uma situação é filosófica quando impõe [ou quando estamos perante] uma relação e confronto de termos, os quais, em geral e segundo a opinião corrente, não admitem nenhum tipo de aproximação. Uma situação filosófica é um embate. Um embate entre termos essencialmente estranhos um ao outro».31

Quando analisámos o processo do acontecimento-verdade, vimos como – recordemo-nos de Ésquilo e de Sófocles – nada, no instante de decisão sobre o acontecimento, nada nos informava, aí, da importância da sua novidade, nem qual o seu impacto. Uma situação filosófica pode ter num acontecimento uma sua componente, não porque deste modo o acontecimento possa ser explicado, mas apenas porque por esse meio a situação filosófica nos mostra, através do acontecimento que exibe como seu componente, a inconciliação que é inerente a ambos. Neste seminário de Buenos Aires, Badiou dá-nos três exemplos de situações filosóficas; comecemos pela evidência (evenemental) do último caso: a relação amorosa fatalmente punida no filme de Mizoguchi, Os Amantes Crucificados. O filme mostra-nos, com plena genialidade, que mesmo sabendo do seu inevitável suplício os amantes, porquanto amantes, nunca chegaram a temer a morte. Estamos perante uma situação filosófica, porque «encontramos aí uma prova definitiva do incomensurável da relação sem relação». Expliquemo-nos: «entre o acontecimento do amor, a perturbação da existência, e as regras vulgares da vida, as leis da cidade e as leis do casamento, não há nenhuma medida comum. O que nos diz então a filosofia ? Vai dizer-nos: “é preciso pensar no acontecimento”. É preciso pensar na excepção. É preciso saber o que temos a dizer sobre o que não é vulgar. É preciso pensar na transformação da vida».32

Esta situação filosófica transporta a tarefa da filosofia: faz-nos reflectir sobre a excepção. Através das outras situações filosóficas compreenderemos a necessidade das decisões, ou a importância da distanciação em relação ao poder. Mas uma situação filosófica também pode ser, de outra maneira, um acontecimento em potência, ou pode estar envolvido numa situação filosófica um protagonista de acontecimentos.

Passemos ao segundo exemplo, seguindo o Diagrama 7: a morte de Arquimedes. Arquimedes tinha o hábito de desenhar problemas e figuras geométricas na areia; um dia está junto ao mar e surge um soldado que exige que Arquimedes se apresente de imediato ao general Marcellus. O soldado insiste na ordem e Arquimedes repetidas vezes o manda esperar mais um pouco para poder terminar um problema. Repetem-se os mandos, continua Arquimedes em reflexão, e, por fim, o impaciente soldado-mensageiro mata Arquimedes. Trata-se de uma situação filosófica tragicamente desfechando uma inconciliação. Não gerou propriamente um acontecimento, apesar de protagonizada por um produtor de acontecimentos, Arquimedes, matemático, cientista.

Noutra situação filosófica, assistindo a um diálogo igualmente inconciliável (como o do Górgias no exemplo de Badiou), somos forçados a tomar partido; não se trata também de um acontecimento, apesar da decisão ser um dos seus motores determinantes. Assim, o acontecimento pode ser parte da situação filosófica sem que esta explique o acontecimento. Embora não o explique, a situação filosófica testemunha sempre a sua distância e excepcionalidade.

O acontecimento ilumina transformações sociais profundas (a Revolução Francesa e a Revolução de Outubro) como critério insubstituível de emancipação. Noutra formulação: apenas do vazio do acontecimento pode provir a «criação de mundos», porque o vazio é o sinal da destruição de uma inconsistência vigente. «Fidelidade ao acontecimento» e «paixão do real» são a mesma coisa. Badiou exemplifica a «paixão do real», expressão que considera definidora do século XX (em Le Siècle, nomeadamente, livro muito recente mas já analisado por autores como Peter Hallward e Slavoj Žižek, este em Organs Without Bodies33), num conhecido case study: Lenine contra Kautsky.

Estamos no terreno da oposição entre democracia parlamentar (refém dos consensos, de que o maior é a resignação da necessidade económica) e política singular. A política singular é subjectiva. Como tal, é uma prescrição. Prescreve a igualdade, a verdade e a justiça. Igualdade, verdade e justiça (que também é incalculável e indesconstrutível em Derrida) são prescrições, porque não se podem reduzir a programas políticos. São o «nós», e nós não somos programáveis. Por exemplo, «igualdade» não significa nada de objectivo. Logo, não pode ser um programa político. A igualdade não é objectiva; na sua subjectividade, dizemos: «é». O que «é», atente-se, diverge em absoluto do «como deve ser». E o que «é» não se define nem é parte da esfera da opinião.



6. «Paixão do real»: Lenine contra Kautsky

Regressemos a Lenine contra Kautsky, recuando ao importantíssimo capítulo 5 («Raisonnement hautement spéculatif sur le concept de démocratie») de Abrégé de Métapolitique e a uma lição que Badiou proferiu no Collège International de Pihilosophie em 1999 (integrada em Le Siècle): «One divides into two».34 Karl Kautsky publicou, em 1918, A Ditadura do Proletariado, em defesa da democracia parlamentar e representativa como uma forma de Estado e do direito de voto «universal», opondo-se à política bolchevique. Badiou destaca a subtileza da resposta de Lenine: se Kautsky defendesse o direito «universal» de voto, estaria a teorizar uma questão russa genérica, mas tal não sucedeu – Kautsky concentrou-se, no fundo, no problema do regime (na «ditadura do proletariado»), negando o processo histórico naquele lugar. Lenine dirá que Kautsky utiliza uma táctica para desacreditar as premissas essenciais do «real». E Badiou conclui o seguinte: «Um teórico é aquele que coloca questões – a democracia, por exemplo – considerando o momento. O renegado é aquele que ignora o momento, e transporta o seu ressentimento para um mero episódio». A resposta de Lenine intitulou-se, como se sabe, A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky.35 Mostrou que Kautsky não considerou o momento histórico no seu todo, antes valorizou um episódio (o voto) não colocado pelo acontecimento (que agendava uma transformação social). Slavoj Žižek chama a este tipo de comportamento (o de Kautsky) «traição à Verdade-Acontecimento»: permanecer imóvel e desvalorizar o acontecimento, como se nada estivesse a ocorrer e a história fosse um distúrbio menor.36

Partindo da «paixão do real» (isto é, da experiência directa do real liberta do quotidiano socializado existente), Badiou chega à tese do «niilismo activo» como o inimigo por excelência do «niilismo passivo» da pós-modernidade. O niilismo activo é o «bom terror».37 A «paixão do real» responde por uma fidelidade (felicidade ?, porque não ?, parafraseando Saint-Just) ao acontecimento que culmina na destruição de toda a realidade – ou seja: não aceitar nenhuma regra, porque tudo está, aqui, agora e sempre, por fazer e construir. Daí a interrogação de Badiou (aos seus opositores da «filosofia política»): «Qual é a tua crítica do mundo existente? O que nos podes oferecer de novo? O que é que criaste?»38





















NOTAS





1. N. Poirier/Alain Badiou, «Entretien avec Alain Badiou», Le Philosophoire, 9, 1999, citado por Peter Hallward, Badiou: a Subject to Truth, Minneapolis, University of Minnesota Press, 2003, p. 5.

2. Este empolado antiplatonismo, apesar de empolado e um território aparentemente dominante no pensamento do século XX, tal como o viu Badiou (que aliás o analisa num trajecto de Nietzsche a Deleuze, segundo o tópico de uma «imanência da vida» contra a «idealidade do conceito»), não interferiu, nem refreando ou impedindo (palavra talvez demasiado forte), uma suposta vocação desmaterializante da arte contemporânea -- por exemplo, do conceptualismo, ou melhor, não exactamente da arte conceptual, enquanto produção, mas sim de alguns dos seus defensores menos esclarecidos. Isto é, não é a arte conceptual que é realmente desmaterializante, mas antes a vontade de alguns dos seus teóricos ou intérpretes (quase sempre desligados dos processos criativos, convenhamos). Ora, quem julga poder reduzir o conceptualismo a uma mera desmaterialização idealizada, esquece ou ignora a complexidade do gesto conceptualista. E, ao mesmo tempo, estaria a ir contra a ambiência antiplatónica da época -- do século XX, e, neste caso concreto, da década de 60. Mas, no fundo, onde pretendo chegar com esta digressão, que parece afastar-me do centro de um livro sobre Badiou, é à seguinte ideia: uma análise pouco cuidadosa resvala sempre num cliché – e aqui atribuir uma vocação exclusivamente desmaterializante ao conceptualismo é um cliché tão evidente quanto o de afirmar que o século XX é um tempo predominantemente antiplatónico. Parecem clichés opostos, mas são efectivamente do mesmo calibre. Por isso, de certo modo, estava errado quando considerei o antiplatonismo «dominante» como um eficaz antídoto à desmaterialização (platónica) da arte (conceptual, performativa, etc – ver o meu A Representação da Vanguarda: Contradições Dinâmicas na Arte Contemporânea, Oeiras, Celta, 2002, capítulo 3, «Rematerialização e Espaço do espectador», p. 54). Ou talvez não estivesse errado de todo, pois, embora elevado a cliché, o antiplatonismo era bem real nalguns casos e nalguns lugares do pensamento: diga-se que em arte era mesmo a tónica de processos como o da Arte Povera ou do pós-minimalismo em geral. E aí, era (é), de facto, impraticável e redutor falar de desmaterialização da arte. Por isso talvez faça sentido querer criticar as pretensões desmaterializantes (em teoria) da arte com esta dominância antiplatonista, se não dominante, pelo menos observável como forte tendência. E, resumindo, ao mesmo tempo que se verifica a existência de um antiplatonismo moderno também se pode reconhecer a importância de superar a dicotomia platonismo versus antiplatonismo.

3. Alain Badiou, Deleuze: «La Clameur de l’Être», Paris, Hachette, 1997, p. 149.

4. Alain Badiou, Pequeno Manual de Inestética, Lisboa, Instituto Piaget, p. 67.

5. Ibidem, p. 68.

6. Ver Alain Badiou, «Dialectiques de la fable», em Alain Badiou (e outros), Matrix: Machine Philosophique, Paris, Ellipses, 2003, pp. 120-129.

7. A propósito, continuando com a relação entre Matrix e Platão, ou, de modo abrangente, sobre a verdade e os limites do virtual, a vontade ou a liberdade e o trabalho-produção, o saber e a moral, a religião e a experiência, entre outras agendas, num regresso em permanência à caverna platónica, pode-se consultar, de William Irwin (org.), o conhecido The Matrix and Philosophy: Welcome to the Desert of the Real, Chicago, La Salle, Open Court, 2002, prosseguir a análise com o imprescindível ensaio de Slavoj Žižek, «The Matrix, or, the two sides of perversion» (pp. 240-266). Ou, de Matt Lawrence, Like a Splinter in Your Mind: The Philosophy Behind The Matrix Trilogy, Malden, Blackwell, 2004. Seria demasiadamente exaustivo continuar aqui a bibliografia sobre o filme dos Wachowski, que é vasta, pois conta ainda com autores como Boris Groys, Peter Sloterdijk, etc. De qualquer modo, o essencial fica enumerado.

8. Alain Badiou, L’Être et l’Événement, Paris, Seuil, 1988. [ doravante EE ]

9. Ver o longo e imprescindível «The politics of truth, or, Alain Badiou as a reader of St. Paul», em Žižek, The Ticklish Subject: the Absent Centre of Political Ontology, Londres, Verso, 1999, pp. 127-170.

10. EE, p. 12.

11. EE, p. 13.

12. EE, p. 13.

13. Alain Badiou, Breve Tratado de Ontologia Transitória, Lisboa, Instituto Piaget, 1999, p. 56.

14. Ibidem, p. 58.

15. Cfr. Gilles Deleuze e Félix Guattari, O que é a Filosofia ?, Lisboa, Presença, 1992 (ver sobretudo o capítulo 6, pp. 133, 134). Mas, a propósito ainda dos encontros e desencontros entre Deleuze a Badiou, o primeiro estudo a consultar deverá ser, obviamente, o Deleuze, já citado, do próprio Badiou. Significativo é ainda o ensaio de François Wahl, «Le soustractif», em Alain Badiou, Conditions, Paris, Seuil, 1992, pp. 9-54. Ou, de Eric Alliez, «Badiou/Deleuze», no dossiê homónimo, em Futur Antérieur, 43, Paris, Abril, 1998. Badiou, que sempre se posicionou sob o signo de Platão, começa por se opor ao que chama de organicidade aristotélica de Deleuze (Leibniz ou Spinoza), Platão contra Aristóteles, portanto, a ruptura do acontecimento contra o fluxo, em suma. Encontram-se entretanto num ponto determinante para este meu pequeno livro: uma oposição comum à hermenêutica e às teorizações do «fim» (da política, da arte, da filosofia, etc).

16. EE, p. 312.

17. Giorgio Agamben, A Comunidade que Vem, Lisboa, Presença, 1993, p. 11.

18. EE, p. 312.

19. EE, p. 312.

20. EE, p. 543.

21. EE, pp. 202, 203.

22. EE, p. 556.

23. Alain Badiou, Peut-on Penser la Politique ?, Paris, Seuil, p. 68.

24. EE, p. 544.

25. «On the truth-process: an open lecture by Alain Badiou», conferência proferida em Agosto de 2002 na European Graduate School (Saas-Fee, Wallis), disponível em www.egs.edu/faculty/badiou/badiou-truth-process-2002.html .

26. Ibidem.

27. Alain Badiou, Compêndio de Metapolítica, Lisboa, Instituto Piaget, 1999, p. 16. (Note-se que quanto a estes três volumes reunidos nesta editora sob o título genérico «Meditações Filosóficas» -- este Compêndio, o Breve Tratado de Ontologia Transitória, e Pequeno Manual de Inestética, publicados também em simultâneo pelo autor em França --, há alguns problemas de tradução a assinalar, sobretudo graves no Compêndio, tornando ilegíveis ou invertendo mesmo algumas ideias. Por exemplo, p. 33, lê-se: «todo o esforço de Myriam Rivault d’Allones é de duvidar do em-comum de uma potência imanente». Aqui Badiou critica o primado do «em-comum» em Hannah Arendt e Rivault d’Allones, logo esta não pode «duvidar» desse «em-comum» que, com efeito, exalta e partilha. No original: «tout l’effort de Myriam Rivault d’Allones est de doter ......», Abrégé de Métapolitique, Paris, Seuil, 1998, p. 30. Como outros erros são detectáveis sugere-se pois a consulta dos textos originais da Seuil de 1998.)

28. Ibidem, p. 28.

29. Peter Hallward, Badiou, p. XXVII.

30. Ver «Préface-Circonstances et Philosophie», em Circonstances 2: Irak, Foulard, Allemagne/France, Paris, Lignes & Manifestes/Léo Scheer, pp. 9-19.

31. Ibidem, pp. 9-10.

32. Ibidem, p. 15.

33. Ver Slavoj Žižek, Organs Without Bodies: on Deleuze and Consequences, Londres e Nova Iorque, Routledge, 2004, pp. 102-107.

34. O texto «One divides into two», constitui, com algumas variantes, o capítulo 6 do livro Le Siècle (Paris, Seuil, 2005). Foi publicado previamente em Culture Machine, 4, 2002; está disponível em http://culturemachine.tees.ac.uk

35. V. I. Lenine, A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky, Coimbra, Centelha, 1974. Seguir também as análises de Žižek em Slavoj Žižek (org., introdução e posfácio), Revolution at the Gates: a Selection of Writings from February to October 1917 – V. I. Lenin, Londres, Verso, 2002.

36. Žižek, The Ticklish Subject, p. 131.

37. Badiou utilizou esta expressão muito ironicamente para definir o fulcro do seu trabalho; cito uma conversa informal com Slavoj Žižek, e não deixa de ser curioso que este o refira com algum destaque no índice de conceitos de The Plague of Fantasies, Londres, Verso, 1997. Exemplos inevitáveis de «bom terror» para Žižek: virar costas e «enfaticamente nunca discutir temas como: “quantas pessoas na verdade morreram em Auschwitz”, quais são “os aspectos positivos da escravatura”, “a necessidade de suprimir os direitos colectivos dos trabalhadores”, etc», p. 26.

38. Badiou, «One divides into two».